STANISLAWSKY - REFERÊNCIAS


STANISLAWSKY - REFERÊNCIAS


O Núcleo do Teatro de Brecht publicou os Cadernos do Teatro em mídia impressa que foi distribuído aos participantes dos cursos e do Núcleo para que houvesse um conhecimento básico sobre as técnicas de teatro para os iniciantes.

Aqui está sendo mostrado o volume nº 5 que versava sobre o método de Stanislawsky na acepção de Eugênio kusnet.


KONSTANTIN STANISLAWSKY

Ator e produtor russo Konstantin Stanislawsky (o nome original era Konstantin Sergueievitch Alekseiev), nascido em 17 de janeiro de 1863 e morto em 7 de agosto de 1938, foi criado no meio artístico cursando durante algum tempo a escola teatral. Começou sua carreira associado à Sociedade Semiprofissional para Arte e Literatura como ator de papéis clássicos e como um produtor inovador.Ao estabelecer seu método para ensinar atores a realizar imponentes interpretações no palco começou a fase dos grandes diretores do teatro moderno.
Em 1897, junto com Vladimir Nemirovich-Danchenko, Stanislawsky fundou o Teatro de Arte de Moscou, dedicando-se levar a arte dramática a um público maior e com mais realismo nas apresentações de novas peças teatrais. Estreando com uma produção histórica baseada no conto de Aleksei Tolstoi com a peça teatral “Ivan o Terrível”, o novo grupo alcança seu primeiro sucesso notável com o trabalho de Anton Chekhov “A Gaivota” em 1898, peça contemporânea que serviu perfeitamente para demonstrar a realidade antiteatral que até então dominava os palcos e o trabalho dos atores. A ausência do gesto dramático, da declamação retórica, e do enredo forçado nas peças de Chekhov, também incluindo “Tio Vanya” (1899), “As Três Irmãs” (1901), e “O Jardim de Cerejas” (1904), todas produzidas pelo Teatro de Arte de Moscou, exigiu a aplicação de novas técnicas que Stanislawsky acreditava que deveriam ser descobertas pelo ator na ação indireta e no subtexto do diálogo, colocando-se no lugar do personagem e sofrer todas as emoções internas do personagem. Stanislawsky usava freqüentemente um conjunto de expresssões e gestos para carregar a essência de um personagem. Como diretor ele usou sons e música de fundo para criar atmosfera.
Outras peças importantes dirigidas por Stanislawsky incluíram “A Moça de Neve” de Ostrovsky (1900), “Um Inimigo das Pessoas” de Ibsen (1900-01), “As Mais Baixas Profundidades” de Gorky (1902), e, logo após a revolução bolchevique, peças teatrais soviéticas. Ele também convidou para trabalhar artistas como Gordon Craig que dirigiu o “Teatro de Hamlet” em 1911 e Aleksandr Benois que dirigiu o “Doente Imaginário” de Molière em 1913.
Stanislawsky realizou sucessivamente três oficinas de arte dramática, onde projetou os talentos de Vsevolod Meyerhold e Eugene Vakhtangov que tornaram-se seguidores de Stanislawsky e criaram o Teatro-Balé. As teorias de Stanislawsky são contidas em “Minha Vida na Arte” (1924), escrito em inglês durante uma visita aos Estados Unidos, “A Preparação do Ator” (1926), “A Construção do Personagem” (1928), e “A Criação do Papel” (1930).
No Brasil, a obra e o método de Stanislavski foram divulgados por um seu discípulo russo, o ator e diretor Eugenio Kusnet. A seguir a reprodução das 6 aulas de Kusnet baseadas no Método.

INICIAÇÃO À ARTE DRAMÁTICA

1ª AULA

Antes de entrar nos assuntos desta Iniciação à Arte Dramática, acho muito útil estabelecermos certas normas que possam reger nossas relações durante as aulas. Para isso é preciso tornar claro nossos objetivos.
Se vocês estão lendo este trabalho é porque se interessam pelo teatro. O mesmo poderia dizer aos seus ouvintes um professor de física ao iniciar suas aulas: “Se vocês estão aqui é porque se interessam pela física”. Até aqui a situação é idêntica: o interesse pela matéria a ser estudada.
Mas a primeira é uma arte, ao passo que a segunda é uma ciência. Na primeira quase tudo depende da concepção individual, na segunda tudo é baseado nas normas firmemente estabelecidas para todos.
Poderiam vocês imaginar que o nosso hipotético professor de física continuasse sua conversa com os alunos da seguinte maneira: “Antes de entrar nos assuntos da física, gostaria de saber se vocês estão de acordo com a lei da gravidade ou tem uma outra idéia a esse respeito?” Essa pergunta seria um absurdo não é? Entretanto não seria nenhum absurdo perguntar a vocês o que acham das leis que devem reger a Arte Dramática, porque nessa arte não há nada de inviolável, tudo é duvidoso, tudo depende da concepção pessoal. Não há meio de provar a inviolabilidade de certas regras: para alguns elas são invioláveis, para outros são apenas uma das formas de teatro”.
Isso me faz lembrar a conversa que tive com um dos nossos homens de teatro: “Kusnet”, não está longe o tempo em que o ator não será mais necessário em teatro! Eu desviei a conversa exatamente porque nada poderá provar em contrário; eu sabia que a idéia desse senhor não era nada nova: o diretor usa todos os meios físicos à sua disposição (formas, linhas, luzes e sons) para transmitir a idéia da obra dramática. Nessas condições qualquer pessoa viva serve no lugar de um ator; basta colocá-la na atitude desejada, iluminá-la convenientemente, etc. Não duvido que, usando esses meios, o diretor poderá conseguir muitos efeitos de emoção ou raciocínio sobre o seu espectador, mas será isso teatro? Eu respondo: “Não! Mas nada posso provar. Só posso dizer que, a meu ver, teatro é outra coisa, que o teatro sem ator para mim não existe. Stanis­lawsky, no fim de sua vida que dedicou às pesquisas sobre todas as possibilidades de teatro, disse: “Cheguei à conclusão de que os meios materiais de uma encenação são limitados e que o mais importante elemento em teatro é o ator, o homem porque seus meios, suas possibilidades não tem limite, como não tem limite a combinação das notas da gama musical: ela nunca foi nem nunca será esgotada pelos compositores. É assim, e só assim que eu entendo o teatro”.
Mas imaginemos que entre vocês, meus leitores, se encontrem pessoas contrárias a essa concepção de teatro. Que faríamos nós, eu que escrevo na base da minha concepção, e vocês, com uma concepção diametralmente oposta? É claro que nessas condições nós nunca chegaríamos a qualquer resultado útil. Daí a absoluta necessidade de estabelecermos as bases comuns para nossos estudos. Não se assustem, não pretendo impor nenhum estilo de teatro, trata-se apenas de estabelecer o ponto de vista comum sobre o que é e como deve ser o teatro.
Em primeiro lugar procuremos estabelecer o que é “bom teatro” e o que é “mau teatro”.
Há uns anos se dizia (aliás, às vezes ainda se diz) para qualificar um mau espetáculo: “Ruim como rádio-novela!” Procurem lembrar-se de algum exemplo de rádio-novela daquele tempo e verão que realmente havia razão para essa comparação. E notem: em muitos casos não era culpa dos atores e sim das condições em que trabalhavam, pois os “scripts” eram entregues, às vezes poucos minutos antes da irradiação e a novela ia “pro ar” sem urna leitura sequer.
E o resultado naturalmente, era bem triste, tudo era estandartizado: aqueles vilões sanguinários com suas vozes roucas e suas risadas “sinistras”; aquelas mãos “sofredoras”, que logo no início da novela, sem razão alguma ainda para sofrer, já falavam com um nó na garganta; aqueles maridos infiéis que, ao mentir a esposa, gaguejava tanto que nenhuma pessoa normal poderia acreditar na sua inocência, etc., etc.
Creio que não pode haver duas opiniões a respeito da qualidade desse tipo de teatro.
E agora procurem exemplos do contrário, daquilo que vocês pudessem chamar de bom teatro. Procurem lembrar-se de algum bom trabalho do teatro nacional, ou dos teatros estrangeiros que visitam o Brasil, ou mesmo dos trabalhos de cinema. Pensem e procurem compreender por que os atores desses exemplos os impressionaram? Qual é a diferença entre um bom e um mau ator? Uns dirão que o bom ator “vibra” e o mau “fica frio”; mais outros dirão que o bom ator “vive o papel” e, com isso, chega a nos fazer acreditar na realidade da existência do personagem, ao passo que o mau “representa”.
Resumindo todas essas opiniões e possivelmente muitas outras podemos dizer que os maus atores não nos convencem da realidade do que representam, e os bons convencem. Por conseguinte, o objetivo do ator que pretende fazer “bom teatro” é conseguir essa capacidade de convencer o espectador da realidade do que se imaginou para a realização do espetáculo, e que no fundo sempre redunda na transmissão da idéia do autor ao espectador.
Aqui, entre parêntesis, quero frisar que, para mim é um axioma que o artista não pode criar sem ter vontade de convencer.
Mas, voltando ao assunto: já que se trata da transmissão de uma idéia, o principal objetivo do ator não pode ser convencer o espectador da realidade material da vida, mostrar-lhe como a gente dorme, anda, come, etc., mas sim, mostrar-lhe o que a gente quer, o que pensa, prá que vive, etc.
O ator, através do seu comportamento físico, exterior (mostrando como o personagem dorme, come, anda, fala) convence o espectador da realidade da vida interior do personagem; do que ele pensa, do que ele quer, do que ele sente, o que vale dizer: convence-o da realidade da vida do espírito humano.
Assim chegamos a concretizar o principal objetivo do teatro, objetivo que se tornou tão claro na definição de Stanislawsky: A ARTE DRAMÁTICA É A CAPACIDADE DE REPRESENTAR A VIDA DO ESPÍRITO HUMANO, EM PÚBLICO E EM FORMA ARTÍSTICA.
Como podem constar, não há nisso a mínima limitação: todo e qualquer estilo de teatro é aceitável, contanto que contenha a vida do espírito humano.
Em conversa com um dos nossos diretores (e por sinal, um excelente diretor) esse problema surgiu da seguinte forma: Ele me perguntou “E se eu lhe pro­pusesse o papel de um simples objeto e não de um ser humano, por exemplo, o papel de uma cadeira, você aceitaria? Eu respondi: “Se essa cadeira tem amor por uma outra cadeira; se essa cadeira nutre a esperança de, um dia, se tornar uma poltrona; se essa cadeira tem medo de morrer queimada num incêndio, então eu aceitarei o papel, porque nesse caso, a sua cadeira terá a vida de um espírito humano. Do contrário, você não precisa de um ator,  ponha uma cadeira verdadeira e que os seus atores falem com ela”.
Stanislawsky e seus verdadeiros adeptos nunca fizeram objeção a nenhum estilo de teatro. Um conhecido diretor de teatro soviético, Nicolai Okhlópkov, quando duramente criticado pelos seus colegas da camada conservadora que o acusavam de estilização e modernismos exagerados, respondeu às acusações num artigo: “Que cada diretor use o que achar conveniente e de acordo com os seus princípios artísticos contanto que isso não somente não prejudique, como também ajude, coopere na realização mais importante: a revelação do rico e complicado mundo interior do homem. Do contrário o ator não terá nada que fazer e o diretor nada que procurar”. “E depois” o espetáculo só se realiza quando se consegue revelar esse mar de idéias, emoções e desejos; e um mundo inteiro em cada gota desse mar.
Apesar do seu modernismo, Okhlópkov se enquadra perfeitamente dentro dos princípios do Método. É interessante notar que os mais extremados “esquerdistas” do teatro não fogem desse fator, a vida do espírito humano. Eugéne Ionesco, num artigo que ele explica como, a seu ver, deve ser o teatro de hoje, escreve: “Le tteatre est dans l’exageration extrême dos sentiments, l’exageration qui dialogue le réel”. Portanto embora extremamente exagerados, os sentimentos continuam a existir no seu teatro; portanto; existe nele a vida do espírito humano.
Assim se apresenta a primeira parte da definição de Stanislawsky “A CAPACIDADE DE REPRESENTAR A VIDA DO ESPÍRITO HUMANO”.
Quanto aos outros dois detalhes da definição de Stanislawsky eles são óbvios: “Representar em público”. Não se pode conceber o teatro sem espectador, ele faz parte da própria natureza desta arte.
E, finalmente: “... em forma artística”. A ação em teatro não deve ser feita. Com isso eu não quero dizer que ela deve ser bonita, ela pode ser horrorosa, horripilante, mas ao mesmo tempo, bela como é bela a cena da morte de Desdêmona, apesar do horror que ela causa ao espectador. Sabemos que a vida humana está cheia de detalhes feios e que esses detalhes talvez tenham que fazer parte da ação teatral, mas cabe aos intérpretes dar-lhes, na medida do possível, um aspecto que não prejudique a ação: Uivos prolongados de um homem sub­metido à tortura, excesso de sangue e uma ferida aberta numa cena de assassinato, detalhes de vômitos numa cena de doença, todos esses detalhes; embora representem aspectos de um sofrimento real, em teatro apenas causam uma náusea ao espectador e lhe tiram a atenção do mais importante: “o rico e o complicado mundo interior do homem”.
Então repetimos, o objetivo do ator é convencer o espectador da realidade plicado mundo interior do homem.
Vocês talvez conheçam casos em que grandes intérpretes de personagens históricos conseguiam convencer os espectadores das características contrárias à concepção histórica, científica. E mais ainda, dois intérpretes do mesmo papel conseguiam convencer seus espectadores da realidade do personagem, apesar da enorme diferença nas suas interpretações.
Como é que eles conseguiam isso? O que é que eles usavam para convencer? A resposta geralmente era essa: “É um grande talento!... É um gênio!...” Mas essa resposta não nos satisfaz, a nós atores. Um ator de grande talento, um gênio, deve fazer alguma coisa para conseguir esse resultado. E se eu pudesse descobrir o que se passava na mente deles, quais eram os processos que regiam o trabalho deles? Não poderia eu usando os mesmos processos, chegar pelo menos a uma parte do que eles conseguiram?
Foi esse o objetivo de Stanislawsky quando ele começou as pesquisas que mais tarde, se transformariam no Método.
Convencer! É possível convencer alguém de alguma coisa em que nós mesmos não acreditamos? É muito difícil. Um vendedor que sente náuseas só de pensar no vinho que oferece ao comprador, dificilmente poderá vender uma garrafa; mas naquele que durante a conversa, se baba todo ao descrever o paladar do vinho, esse sim convence com facilidade. Então o que é que deve fazer o vendedor que não gosta de vinho? Ele deve chegar a acreditar que o vinho é formidável, adquirir essa fé não obstante suas sensações pessoais.
Um político que, durante seu discurso eleitoral, deixa de acreditar na sinceridade de suas promessas, tem pouca probabilidade de ser votado pelos ouvintes.
Se na vida real, para convencer alguém da realidade que inventamos, temos que chegar a acreditar nessa realidade, imaginem como isso deve ser importante no trabalho do ator: adquirir a fé no que é irreal, inexistente!
Então aquele espantoso dom de certos atores de convencer só pode ser baseado nessa outra capacidade não menos espantosa, a de adquirir fé no que eles representam.
Mas como eles conseguem essa fé? Há para isso uma explicação que pouco explica: a inspiração! Baixou o santo e o ator representa maravilhosamente. O santo dos atores geniais é muito simpático, ele baixa sempre. O santo dos atores simplesmente talentosos já é um santo preguiçoso, mais instável, e esses atores ficam à mercê dos caprichos do seu santo: Hoje eles representam bem, amanhã mal.
Por que então não procurar os meios para fazer o santo baixar à nossa vontade? Por que não estudar a mecânica da inspiração? Pois não é ela que rege o trabalho dos atores geniais?
Stanislawsky tinha amizade com um desses atores geniais. Tomaso Salvini, célebre ator trágico italiano, o famoso intérprete de Otelo. Procurando compreender a natureza desse gênio, Stanislawsky deparou por analogia, com mais um exemplo de inspiração: as crianças com seus jogos de brincadeiras. Tanto um gênio como uma criança usavam a mesma arma: a fé.
Num de seus livros, Stanislawsky cita um caso que eu acho tão ilustrativo que prefiro repetir mesmo para aqueles que o conhecem.
No seu teatro para uma peça, ele precisou de uma criança de 4 a 5 anos para entrar em uma cena em que o casal (os pais da menina) que está em vias de se separar, discute os íntimos detalhes da separação. Nesse momento sua filha com uma boneca na mão entra e pergunta ao seu pai que remédio ela deve dar à sua filha doente. O pai lhe aconselha uma aspirina e ela sai, mas essa interferência modifica tudo na vida do casal, eles se reconciliam. A menina que devia fazer esse papel chegou ao teatro em companhia de sua mãe, na hora do ensaio. O contra-regra, por falta de uma boneca, improvisou uma de um pedaço de lenha enrolado em seda vermelha e, ao entregá-la à menina disse: “Esta aqui é sua filha, está doentinha”.
Stanislawsky conta: “Ao receber a boneca tão grosseiramente improvisada, a menina a tomou nos braços com o mesmo cuidado com que só uma verdadeira mãe tomaria a sua filha doente”. O contra-regra mostrando os dois atores em cena continuou: “Aqueles dois são teu pai e tua mãe”. Apesar da presença de sua verdadeira mãe, a menina não fez a mínima objeção e aceitou incontinenti seus novos pais. “Vá lá”, disse o contra-regra, “e diga a seu pai que sua filhinha está doente. Ele vai te aconselhar um remédio e aí você volta para cá”. A menina entrou em cena, puxou a manga do ator e disse: “Papai, ela está doente”. O ator respondeu: “Dê uma aspirina para ela”. Mas então em vez de sair, a menina disse: “Não!” O ator insistiu sorrindo: “Pode dar aspirina que é bom!” Mas a menina teimou novamente: “Não!” Mas por quê? Então a menina disse confidencial­mente: “Precisa fazer lavagem...” Stanislawsky foi obrigado a incluir isso no texto porque a menina não mudava a sua convicção de que sua filha estava com dor de barriga. Não é um exemplo maravilhoso de inspiração desses melhores atores do mundo: as crianças!
Quanto às suas observações no trabalho de Tomaso Salvini, Stanislawsky constou que, apesar de sua capacidade de adquirir fé, Salvini não se limitava a esperar “o santo baixar”. Ele chegava ao teatro duas ou três horas antes do espetáculo; lentamente vestia, peça por peça, a roupa do personagem; a sua maquiagem também levava muito tempo: ele observava pouco a pouco, como surgia no espelho o rosto do personagem. Depois disso, já vestido e maquiado, ele subia ao palco deserto e andava sozinho pelos cenários da peça. E só depois começava o espetáculo.
Por que Salvini fazia isso? Pois se ele podia conseguir a inspiração instantaneamente! Bastava fazer isso no último momento! Sim, perfeitamente. Mas então é de se supor que Salvini não ficava satisfeito com o resultado obtido, e que foi assim que passou a procurar os defeitos da inspiração três horas antes do espetáculo, e depois, pouco a pouco punha essa inspiração a funcionar materialmente, isto é, transformando-a em ação, começando a agir como se fosse o personagem. Assim ele tornava a ação não casual, como muitas vezes acontece sob o efeito da inspiração, e sim costumeira, exercitada, que ele podia repetir a qual­quer momento.
É curioso que o mesmo se passa com esses atores geniais, as crianças; basta sugerir um jogo, uma brincadeira para que a imaginação da criança se transforme em ação instantemente, mas se a criança repete o jogo, a sua ação toma-se cada vez mais rica em detalhes e ainda, mais próxima à “realidade do invento”;
Assim constantemente constatamos que, em ambos os casos, a fé obtida através da inspiração se transforma em ação. Tanto um ator genial, como uma criança sob o efeito da inspiração adquirida, a vontade de agir agem com todo o conteúdo da vida do espírito humano.
Sim, eles, Os geniais! E nós, coitados? Que devemos fazer nós que não conseguimos essa fé instintivamente? Que me adianta tentar o impossível: penetrar no subconsciente de um gênio ou de uma criança para descobrir a mecânica da inspiração?
E se, em vez disso, eu procurasse analisar e compreender a ação dos personagens que eles representam? E já que esses personagens contêm a vida real do espírito humano, não deveria eu procurar analisar e compreender toda e qualquer ação humana na vida real? E então, armado com esses conhecimentos, será que eu não poderia usar o caminho inverso do que eles, os gênios usam? Não poderia eu começar por agir como personagens na base da simples lógica da vida real? E depois, já agindo, não conseguiria, através disso, obter pelo menos uma parte da fé que os gênios obtêm instintivamente?
Foi na base dessa hipótese que Stanislawsky começou suas pesquisas: estudar os processos naturais que regem a ação na vida real para depois transpor isso para o trabalho de teatro.
Nas próximas aulas procuraremos estudar os resultados dessas pesquisas e sua aplicação no nosso trabalho.

2ª AULA

Antes de começar a leitura desta aula, procurem lembrar-se o conteúdo da aula anterior:
- O trabalho do teatro é um trabalho de equipe. O ator sendo um dos elementos da equipe deve submeter a sua criação artística à coordenação do espetáculo pelo diretor.
- Os nossos estudos do trabalho do ator serão baseados no método Stanis­lawsky.
- A necessidade de estabelecer bases comuns para este estudo: o objetivo do teatro deve ser a revelação da vida do espírito humano e o objetivo do ator, convencer o espectador da realidade dessa vida.
- A origem do Método é o estudo dos processos que regem a atuação dos atores geniais (ou das crianças): através da inspiração eles adquirem a fé no que é irreal.
- Essa fé induz o ator a agir e, conseqüentemente, ele age no que é irreal, ou seja, age como personagem.
- A hipótese de proceder de maneira inversa: estudar os processos que regem a ação na vida real para que, agindo possa conseguir a fé no que é irreal.
- Assim, através de várias considerações, chegamos à conclusão de que a AÇÃO é o fator mais importante na nossa arte.
É interessante notar que a palavra AÇÃO é o verbo AGIR tão em uso na terminologia teatral desde os tempos mais remotos. A palavra DRAMA em grego significa AÇÃO. A palavra ÓPERA, usada em todas as línguas com o significado de DRAMA MUSICADO, vem do verbo operar, ou seja, agir. A palavra ATOR significa simplesmente “agente do ato”; o que age, mas é usada em quase todas as línguas como sendo “homem que representa em teatro, cinema e etc.”. Enquanto aos outros artistas se dá uma definição mais concreta (escultor: o            que esculpe; pintor o que pinta; violinista o que toca violino, etc.), ao artista de teatro ninguém chama de “teatralista’ ou coisa que valha, mas sim de ator; a uma parte de peça teatral não chamam de “capítulo” e sim de ato.
Essas nossas considerações que parecem tão óbvias, quase infantis, são de enorme importância para nós: elas nos mostram como a idéia da AÇÃO preocupavam os homens de teatro desde milênios e milênios.
Vamos, pois analisar como a AÇÃO se processa na vida real e como ela deve se processar em teatro. Durante uma aula para um grupo de atores profissionais, eu pedi a uma aluna que contasse algum fato impressionante de sua vida. Sua narração foi gravada. Ela contou um caso que impressionou muito seus colegas. Ás dez horas da noite ela foi atacada numa das principais ruas de São Paulo por um individuo que queria levá-la para dentro do carro dele. Como ela resistiu decididamente, foi espancada e atirada no meio da rua quase inconsciente. Em seguida ela narrou o que se passou uns dias mais tarde: quando ela estava passando numa outra rua, bastante escura, desceram de um carro dois rapazes, ficando ainda mais um dentro do carro, e se dirigiram a ela. Apesar de se ver num perigo muito maior do que na primeira vez (ou talvez exatamente por causa disso), ela inesperadamente criou coragem porque imaginou que estava com um revólver, e pensou “agora eu mato um!” Com a mão nos bolsos do casaco ela passou calmamente entre os dois rapazes que não tiveram coragem de atacá-la. Logo em seguida ela se viu correndo como uma louca por uma das ruas adjacentes. Essa última parte foi contada com tanto humor que ela mesma e os ouvintes riram muito.
Ouvindo a narração em casa eu fiquei muito impressionado com a expressividade da narração e com a complexidade das emoções da moça. Achei que o material era digno de ser estudado como uma boa cena de teatro. Transcrevi a narração e, na próxima aula, propus à mesma atriz que, depois de ouvir várias vezes a narração, estudasse o texto escrito como se fosse parte da peça e em seguida, a interpretasse novamente. Notem que se trata de uma moça que eu considero uma atriz de grande talento e bem estudiosa.
Ela concordou e depois de uma rápida preparação, gravou o texto novamente. Surpreendentemente para todos, inclusive para a própria intérprete, todo o valor da narração espontânea desapareceu; o que era brilhante tornou-se monótono, o que produziu compaixão dos ouvintes na primeira narração, evocou sorrisos na segunda; o que causou risos alegres na primeira, causou uma espécie de estranheza.
Como podia ter acontecido isso? O problema devia ser fácil, pois a atriz não precisava de nenhuma explicação, e o texto era dela e o personagem ela mesma. Entretanto se na primeira vez ouvimos uma excelente interpretação, na segunda foi uma interpretação cheia de notas falsas ou inexpressíveis. Que aconteceu então?
É simples. Na primeira vez essa atriz foi “dirigida” pela melhor diretora do mundo, dona Natureza, e na segunda repetição, ela simplesmente procurou imitar a excelente interpretação da primeira vez. Na primeira vez ela não precisou estudar e a ação do personagem (dona Natureza explicou tudo), ela era o personagem e, conseqüentemente, estava agindo realmente. Que devia ela ter feito antes de começar a narração pela segunda vez? Devia ter encarado o problema como em teatro, isto é realizar o trabalho de uma atriz perante um personagem, estudar e compreender as razões, as causas naturais que a levaram a aquela espontaneidade de ação na primeira vez: com que objetivo ela contou o caso? De que queria convencer os seus ouvintes? Que pensava enquanto dizia esta ou aquela frase? Etc.
Pondo em prática os elementos desse estudo, ela estaria agindo como se fosse pela primeira vez, ou seja, como se fosse o personagem que lhe foi oferecido para interpretar. Em vez disso, ela, depois de ter ouvido várias vezes a gravação, procurou imitar suas próprias inflexões. Por que? Porque o seu objetivo único era demonstrar aos espectadores o seu talento. Em resultado, quem estava agindo era a atriz, e não o personagem. Em cena nós agimos em nome de uma outra pessoa, agimos como se fossemos uma outra pessoa. Isto não quer dizer que a pessoa do ato deva desaparecer deixando seu lugar ao personagem. Nada disso. Isto significa apenas que o ator aceita todos os problemas do personagem como se fossem dele e então age como tal. Quando o ator não consegue agir no sentido dos objetivos do personagem, ficam apenas os objetivos dele, do ator; brilhar, ser admirado, ser o “tal”, etc.; mas isso não interessa ao espectador que vai ao teatro para ver a vida dos personagens com todos os seus problemas e objetivos. Essa predominância dos objetivos do ator sobre os objetivos dos personagens, ou mesmo a quase ausência desses últimos, foi admiravelmente demonstrada pelo atores do “Teatro dos Sete” em Ciúmes do Pedestre, de Martins Penna. Os intérpretes desse espetáculo não pretendiam representar os papéis dos personagens da peça e sim dos papéis dos atores contemporâneos de Martins Penna, representando a sua peça naquele tempo. Por conseguinte, os objetivos dos personagens da peça não eram levados em consideração, o problema era mostrar os objetivos dos atores. Assim, Sérgio Brito, fez o papel de um ator trágico que, por sua vez, fazia o papel de marido ciumento. O objetivo principal do ator trágico era demonstrar a sua voz formidável e sua capacidade interpretativa.As exclamações “Ah!” e “Oh!” eram feitas na base da voz super-impostada e, numa das cenas, o timbre de voz mudava conforme o animal com que o personagem se comparava; houve um Oooooh!... especial para um leão e um Aaaaah!... para um elefante. É claro que os problemas do “marido traído” sumiam atrás dos problemas do ator trágico. Fernanda Montenegro fazia o papel de “Primeira Dama” da companhia, que interpretava o papel de “Esposa Adúltera”. A preocupação da “Primeira Dama” era demonstrar ao público o seu virtuosismo. Quando, “enfrentando a morte”, dizia ao marido: Agora que te ouvi, ouve-me também! etc., a sua voz era de um timbre quase masculino, de tanto heroísmo e coragem que a atriz queria demonstrar. Mas quando passava a narrar a sua infância: “Minha mãe, Deus que a perdoe...” a sua voz adquiria o timbre infantil. Preocupada com esses problemas, poderia a atriz agir como o personagem? O mesmo acontecia com os outros intérpretes: todos eles estavam preocupados em “brilhar” nos seus papéis.
Os que assistiram àquele espetáculo, devem se lembrar que não se tratava de uma simples caricatura, havia uma certa sinceridade na interpretação, eles se sentiam realmente comovidos, mas não como personagens, e sim como “atores formidáveis que eram!” E é o que muitas vezes acontece com os atores: é fácil confundir suas próprias emoções com as do personagem. O ator gosta de chorar, sofrer. . . Nesses momentos ele admira a si próprio e fica comovido a ponto de chorar com lágrimas de verdade. Experimente convencê-lo de que ele estava falso, ele não poderá acreditar.
Uma coisa dessas aconteceu comigo mesmo. Eu traduzi com meu amigo, o falecido Brutus Pedreira, uma das peças de Leonid Andréiev, “Aquele que leva bofetadas”. Quando recebi os primeiros exemplares mimeografados, fiquei muito comovido com as recordações. Eu fiz a peça em russo em 1924 com um dos geniais atores russos, Pevtson. A idéia de poder representar esse texto em português, e mais ainda, representar o papel que fiz, o de Conde Mancini, mas o papel feito por Pevtsov, o papel principal, me deu vontade de experimentar imediatamente uma cena da peça. Eu liguei o meu gravador e li a cena. Durante a leitura as lágrimas me sufocaram! Então, pensei eu, a cena deve ter sido maravilhosa! Liguei o gravador, fiquei ouvindo e... chorei novamente! Era uma prova cabal: o meu primeiro ouvinte, eu também fiquei comovido! Para completar o meu triunfo, pedi que Irene, minha mulher, ouvisse a gravação. Desde os primeiros momentos estranhei uma certa surpresa no rosto dela, e em seguida uma espécie de dureza e não sei o que mais, tudo menos a admiração que eu esperava. Quando, depois de um longo silêncio, insisti que ela me dissesse sua opinião, ela “prorrompeu em uma torrente de insultos”, chamando-me de canastrão, de ator de rádio-novela, e saiu correndo. No primeiro momento atribui isso a alguma outra razão, pensei: Que foi que eu lhe fiz? Mas não houve nada. Passada uma meia hora dessas considerações, fiquei um tanto desconfiado: E se ela em parte tem razão? Voltei a ouvir a gravação...  e logo tive a terrível confirmação: não era em parte, ela tinha razão totalmente, era pior do que qualquer rádio-novela.
Como aconteceu isso? A explicação não era difícil: ao começar a gravação, eu nem me dei ao trabalho de pensar nos objetivos do personagem, limpei a garganta e me dediquei unicamente a meu próprio objetivo: experimentar o meu talento! Provar a mim mesmo que eu era formidável!
Há pouco eu disse que os problemas e os objetivos do ator não podem interessar ao espectador, porque eles não têm nada a ver com as circunstâncias em que se passa a ação da peça. Não levem isso ao pé da letra, pode acontecer que a presença e a ação do ator simultaneamente com o personagem façam parte dessas circunstâncias, existindo assim dois personagens dentro do mesmo papel. É claro que, nesse caso, a ação do ator é tão importante quanto a do personagem. No teatro épico de B. Brecht essa coexistência é permanente: o personagem coexiste com o ator-cidadão que narra, que comenta, que apresenta o personagem para o julgamento do espectador.
Mas voltemos ao que dissemos a respeito da necessidade de estudar as características da ação na vida real para, depois transpô-la ao nosso trabalho em teatro.
A primeira particularidade a ser notada é que, na vida real, a ação sempre obedece à lógica. Essa afirmativa, de início parece errada. Por exemplo, quem pode considerar lógica a ação de um louco? Realmente, do nosso ponto de vista, do ponto de vista de gente de mente sã, não existe lógica na ação de um louco. Mas do ponto dele, do louco. Para ele tudo o que faz deve ser perfeitamente lógico. E se nós fazemos um papel de um louco, a lógica de quem interessa ao espectador, a nossa ou a de um louco? Isso me faz lembrar o caso de um dos nossos bons atores, que se passou há muitos anos, numa peça em que ele fazia o papel de um neurótico em crise, havia uma cena em que beijava um manequim de matéria plástica, convencido que se tratava de uma moça viva. Numa certa altura quando passávamos aos ensaios de “narração”, o ator começou a cena com uma porção de gestos, movimentos e entonações de absoluta incoerência.
Quando lhe perguntei a razão disso, ele respondeu, mas ele é um louco! “Então analisando as circunstâncias na base da pura lógica, chegamos à conclusão de que o rapaz não poderia achar nada de estranho no fato de beijar uma moça de quem gostava muito. Naquele momento não existia o manequim artificial, e sim uma pessoa viva. Bastava, pois, que o ator agisse com essa lógica e nada mais. O efeito de loucura era seguro, porque os espectadores viam que ele estava beijando, com toda essa sinceridade e naturalidade, um manequim e não uma moça viva. A partir daquele momento, o ator procurava, tanto nos ensaios como nos espetáculos, acreditar na realidade da vida do manequim, sentir através do contato de sua mão, o calor, a maciez daquele corpo. Como resultado, essa cena sempre produzia um calafrio na platéia”.
Há um outro excelente exemplo de uso da lógica, em “O Diário de Um Louco”, de N. Gógol, interpretado por Rubens Corrêa e dirigido por Ivan de Albuquerque. Quando o personagem diz: “A Espanha tem um rei... Final­mente descobriram... Sou eu!...”, não sentimos a mínima tendência do ator de dar a essa frase um aspecto de loucura, não há nela mais do que a humildade de um monarca que assume a sua responsabilidade. E é exatamente essa simples lógica, que torna a fala tragicamente louca e extremamente comovente.
E, quando o pobre “rei da Espanha”, ao falar de seus trabalhos no plano da política internacional, diz: “Descobri que a China e a Espanha formam um único e mesmo país... A prova está que quando se escreve Espanha dá China”, com a simplicidade de quem diz: “Somei dois e dois e deu quatro”, nós sentimos a sua loucura exatamente por causa dessa lógica esmagadora.
Resumindo: o ator nunca deve esquecer de examinar através da lógica todo e qualquer detalhe de seu trabalho. Stanislawsky disse que ele preferia ver uma interpretação fria, mas clara, que lhe permitisse, ao menos, compreender a ação, do que presenciar uma interpretação de grande temperamento, de grandes emoções, mas que o deixasse confuso a ponto de não poder contar o que acabava de ver.
Vejam como o uso da lógica ajuda o ator na solução dos problemas mais difíceis. Digamos que o problema seja o papel de um cego. O que é um cego?
Uma pessoa que não enxerga. Então é muito fácil. Feche os olhos e faço o papel! Mas o diabo é que o cego anda de olhos abertos e mesmo assim não enxerga. Como posso conseguir essa sensação. Em primeiro lugar vou procurar compreender o que se passa com um cego em matéria de sensações. Sei que a natureza substitui um sentido faltante ou enfraquecido aguçando os outros sentidos. A visão é substituída pela audição e pelo tato. Um cego procura ouvir ou sentir através do tato, o que não pode ver. Assim, esses dois sentidos, a audição e o tato, num cego se transformam em Visão mental. Por exemplo, na rua ele anda “tateando” o chão com os pés ou com uma bengala, para ver mentalmente, os possíveis obstáculos; ouve os ruídos da rua para ver mentalmente, por exemplo, um automóvel que se aproxima. Já que eu vou fazer o papel de um cego, vou prestar a máxima atenção a esse particular e, a título de ensaio, vou andar sem olhar para o chão procurando imaginá-lo, ou seja, vê-lo mental­mente.
Experimente isso leitor, da seguinte maneira: peça que alguém coloque no chão do seu quarto vários objetos, como livros, tábuas, caixas e etc. Em seguida, atravesse o quarto de olhos abertos, porém impedindo-o de ver o chão, por exemplo, segurando na altura de seu queixo um livro ou um caderno. Ao atravessar o quarto pense nos obstáculos cuja posição você ignora, procure vê-los mental­mente quando chegar a tocar neles com o pé, porque, com um pequeno descuido seu, eles podem causar-lhe um tombo.
Ao terminar a travessia, você vai constatar que, apesar de ter andado com os olhos abertos, deixou de ver o que se achava do outro lado do quarto. Para maior clareza faça um colega seu fazer esse exercício na sua presença e observe seus olhos enquanto ele anda: você verá o olhar de um cego.
Da mesma maneira podem ser resolvidas outras situações difíceis: um para­lítico que procura andar, uma pessoa que acorda, etc.
Lembro-me de uma outra aluna do curso dos atores profissionais me perguntou durante uma aula: “Estou ensaiando na televisão uma cena em que meu personagem age sob hipnose. Como devo encarar esse problema?” Respondi que sendo a hipnose um estado semelhante ao sono, o primeiro problema seria “sentir-se dormindo” e que, para isso, seria lógico conseguir um estado de máxima abstração, quando a pessoa está completamente fora do ambiente em que se encontra fisicamente. Para conseguir essa abstração era necessário encontrar uma preocupação tão grande que todos os cinco sentidos do personagem tomasse parte nela. É lógico, que nessas condições o ambiente físico deixaria de existir. Essa minha explicação não foi suficiente: apesar de tê-la compreendido teoricamente, a atriz não conseguiu ver nela uma solução prática: “Como fazer funcionar os cinco sentidos numa preocupação imaginária?” “Como na vida real”, respondeu. “Bem, mas mesmo assim não vejo como”. Uma feliz coincidência ajudou a explicação. Um conhecido psiquiatra, Dr. Bernardo Blay, que assistiu a aula por pura curiosidade, dirigiu-se a uma das alunas: “O que é que a senhora está fazendo?” A moça em questão olhou literalmente como se estivesse acordando naquele momento, e disse: “Nada”. E o diálogo seguiu assim:
- “A senhora ouviu o que nós estávamos dizendo?”
- “Não”.
- “Por que?”
- “Eu estava pensando”.
- “Em que?”
- “No exercício que vou fazer agora”.
Como vocês vêm, não houve necessidade de uma preocupação “tão grande” para que ela ficasse completamente abstraída, bastou uma pequena preocupação mais real. A atriz que levantou a questão disse que compreendeu essa lógica e, mais tarde, contou que a aplicou com sucesso no seu trabalho.
Mas passaremos agora a mais uma característica da ação na vida real; ela é sempre contínua e ininterrupta. Nunca deixamos de agir nem durante o sono: os nossos sonhos talvez sejam a forma mais intensa de ação na nossa vida. E os bons cristãos, dizem que nem a morte interrompe a ação.
Cada momento de nossa ação na vida real tem seu passado e seu futuro. Quero dizer que cada momento presente tem suas origens no passado e seus objetivos no futuro. A frase de Stanislawsky: O nosso “hoje” é apenas resultante do movimento do nosso “ontem” em direção ao nosso “amanhã”, define a mecânica da ação contínua tanto na vida real, como em cena.
Os atores deviam preocupar-se muito menos com a ação do momento do que com a ação anterior e posterior, porque a ação do momento é o resultado da ação contínua.
Vejamos um exemplo: uma pessoa vai por uma rua escura e perigosa, levando consigo uma grande importância em dinheiro para pagar o resgate de sua filha raptada. Essa cena foi feita a título de demonstração durante a aula, por uma assistente minha, atriz Juli Gray. Na primeira tentativa chegamos a sentir nela a presença de um medo real, mas a cena não nos pareceu completa, o personagem não nos pareceu estar realmente agindo. Ela estava com muito medo de que? Juli Gray nos explicou que o medo era resultado da ação de quem procurava evitar o perigo da morte ao passar por aquela rua escura em que ela sentiu a presença dos assassinos. Ora, ela se preocupou em interpretar unicamente a ação do momento, não havia elementos da ação contínua, isto é, o passado e o futuro da ação, porque na nossa proposição o problema do personagem não era apenas de fugir da morte, e sim fugir dos assassinos para conservar o dinheiro do resgate para salvar a vida da filha que foi raptada ontem e poderá ser morta amanhã.
Foi por isso que a seu modo embora real, nos pareceu gratuito. Quando depois de levar em consideração as nossas observações, Juli repetiu a cena, achamo-la quase perfeita.
Em teatro a ação freqüentemente sofre interrupções, intervalos entre os atos e os quadros, saída do ator de cena, grandes pausas em que o ator fica aparentemente inativo. Que deve fazer o ator para eliminar o efeito nocivo dessas interrupções? Recorrer a ação posterior e anterior, como vimos no exemplo demonstrado.
Infelizmente nem todos os atores fazem isso. São capazes de contar uma piada exatamente no momento de entrar para fazer uma cena trágica. Há atores que, para demonstrar aos colegas sua “técnica”, ficam de costas para a platéia e, com caretas fazem os colegas rir e depois voltam à platéia suas “máscaras trágicas”. Não sabem eles que nesse momento, deixam de agir como personagens, que o espectador, mesmo que perceba seus truques “tão engraçados”, sente um corte da ação, uma espécie de vácuo que se forma dentro de sua tensão de espectador.
Vamos ver agora a terceira característica da ação: ela tem sempre e simultaneamente dois aspectos, Ação interior e Ação Exterior, ou seja, ação mental e ação física.
Essas duas formas de ação não podem existir em separado, elas se processam sempre simultaneamente, apesar da aparente ausência de uma delas, por exemplo: a imobilidade total do personagem simultaneamente com uma intensa ação interna. Faça uma experiência: você acompanha com um olhar, de longe, o enterro de uma pessoa muito querida. Por uma ou outra razão, você não pode chegar mais perto. Complete com sua imaginação os detalhes faltantes: Quem é o falecido? Em que circunstâncias ele morreu? Por que você não pode acompanhar o enterro de perto? Quem são as pessoas que o acompanham?, etc. Agora vá agindo, ou seja apenas acompanha com o olhar esse enterro imaginário pensando tudo o que pensaria o personagem nessas circunstâncias. O resultado será uma ação interior muito intensa que nós, espectadores, devemos sentir, apesar de sua imobilidade que é conseqüência da ação exterior quase nula.
É fácil imaginar e experimentar, a título de exercício, um exemplo do contrário: você está extremamente cansado, mas por uma ou outra razão, é obrigado a contar uma estorinha alegre para divertir alguém. Você terá que exercer uma ação exterior muito intensa junto a uma ação interior quase nula. E, como no exemplo anterior, nós devemos sentir na sua alegria a influência do seu cansaço.
As duas formas da ação são ligadas entre si tão intimamente que o ator dificilmente poderá estabelecer como e onde uma influi sobre a outra. Só uma experiência ou um acaso podem indicar-lhe o caminho que deve escolher no uso desse elemento do Método, pois há sempre dois caminhos: um de dentro para fora e o outro de fora para dentro. Quero dizer com isso que, por exemplo, uma emoção adquirida pode produzir lógica, pode introduzir uma ação desejada.
A título de maior esclarecimento, quero lhes contar um caso que me aconteceu durante as representações do “Canto da Cotovia” de Jean Anouilh, no Teatro Maria DelIa Costa. Eu me preocupei muito com o lado físico do comporta­mento do Bispo Cauchon que eu fazia, pois o cenário e as roupas eram tão impressionantes que exigiam um complemento harmonioso por parte do ator. Por exemplo: na cena em que Cauchon procura convencer Joana D’Arc a jurar, eu fazia um gesto com a palma da mão virada para cima, gesto esse, que não sei porque, me fazia sentir mais a harmonia do ambiente. Depois de um dos espetáculos o nosso grande cineasta Lima Barreto, que acabava de assistir à representação, me disse que não sentiu naquele gesto “um homem de igreja” e que o gesto deveria ser feito de maneira inversa, isto é, com a palma da mão virada para Joana, como numa bênção. Eu experimentei, e realmente, me senti muito mais bispo, e isso me comunicou muita mais vontade de convencer Joana. Assim a ação exterior racionalizada, intensificou a ação interior, ansiedade de convencer Joana. Em resumo: ao construir seu papel, o ator nunca deve esquecer a coexistência lógica desses dois aspectos da ação, porque só assim ele age realmente.
E agora estamos chegando à última característica da ação na vida real: não existe ação sem objetivo. Sempre agimos para conseguir alguma coisa. A primeira vista, isso também não parece lógico. Há quem possa perguntar: e a apatia? E a prostração? Que pode desejar uma pessoa nesse estado? Então deve haver na nossa vida momentos em que não desejamos nada. Eu afirmo que não: mesmo quando temos a certeza de nada querer, provavelmente, lá no fundo, queremos não querer, isto é, rejeitamos qualquer vontade, ou então como o cúmulo da falta de objetivo, queremos morrer, mas nesse caso, a morte é um objetivo. Mas passamos a um exemplo da influência do objetivo sobre a ação. Tirei esse exemplo da minha própria experiência de ter casualmente, comparando duas fotografias minhas tiradas em dois papéis diferentes. A primeira é de “Mister Pit­chum” da “Opera dos Três Vinténs” e a segunda é de “Maneco Terra” do filme “Ana Terra” (que, aliás, nunca foi realizado porque a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, naquela época tinha quase entrado na falência). Vou lhes contar a história dessas duas fotos. Eu fiz o papel de Pitchum no espetáculo realizado pela Escola Dramática da Bahia sob a direção de Martin Gonçalves. Antes de começar um dos espetáculos estava muito preocupado com alguns detalhes da roupa, dos acessórios. Uns poucos minutos antes do início, um rapaz da escola me avisa que um repórter precisa tirar com urgência uma fotografia minha. Eu me recusei, não havia tempo. Ele insistiu: “Kusnet, só um instante”. Para me ver livre desse problema, aceitei pedindo que se separassem. Mal tive tempo de me colocar ao lado da escrivaninha do escritório de Mr. Pitchum, tomar rapidamente “a atitude de Mr. Pitchum” e pronto, a fotografia foi tirada. O resultado foi lamentável: há apenas uma careta de Pitchum, mas sem nenhum vestígio da ação dele. Por que? Porque naquele momento, eu nem pensei em algum objetivo de Mr. Pitchum: só havia um objetivo, e este era um objetivo do ator Kusnet, ser fotografado, o mais depressa possível. A outra fotografia, a de Maneco Terra, trata-se de uma fotografia tirada bem no início dos trabalhos. O momento é de uma cena em que Maneco faz sinal a seus dois filhos para que matem o índio que seduziu sua filha Ana. O objetivo de Maneco é muito complexo: Por um outro lado, cumprir o dever do Pai cuja filha foi desonrada, mas por outro lado, evitar a todo custo magoar a sua filha adorada. Esses dois objetivos contraditórios foram cuidadosamente estudados e usados no trabalho. Casualmente, analisando com meus alunos alguns detalhes dessa cena, constatamos que fechando com um cartão a parte inferior do rosto na fotografia e deixando abertos os olhos, vimos como a emoção predominante, a crueldade; entretanto, quando fechamos como cratão os olhos, deixando aberta a boca do personagem, encontramos o amargor, a tristeza que chegava quase às lágrimas; e o conjunto fazia sentir a complexidade de estado emocional do personagem. Portanto, a presença real dos objetivos do personagem, fez com que o ator, embora na imobilidade absoluta da fotografia, estivesse agindo como personagem. Quanto mais atraente para o intérprete do papel for o objetivo do personagem, quanto mais complexo for o problema, tanto mais facilmente será despertada a imaginação do ator. O já citado diretor soviético, Nicolai Okhlopkov, disse num de seus artigos que o diretor deve colocar o ator diante das circunstâncias mais complicadas, ainda pedir-lhe que as complete com sua imaginação. “Não permita, escreve ele, que o ator se sente no lugar mais cômodo para ele, porque assim, na encenação da “Última Ceia”, um dia veremos Judas no lugar de Cristo!!., e mais tarde: “Não deixes o ator procurar um botão perdido, quando pode procurar um amor perdido”.
Para demonstrar que importância tem a atratividade dos objetos, quero lhes contar um caso que me parece bem ilustrativo. Durante os ensaios de “O Canto da Cotovia”, na cena em que Joana D’Arc entra no palácio real, Maria DelIa Costa achava que o estado emocional de Joana D’Arc devia ser de timidez, porque ela, uma simples camponesa, pela primeira vez entrava num palácio. Apesar da lógica do próprio texto em que sentia sua altivez, apesar das cenas anteriores que Joana está em contato direto com um ser muito superior aos reis, o Arcanjo São Miguel, Maria não se convencia. Ela raciocinava na base de um exemplo de sua própria vida, quando ela foi ao palácio do Catete para uma audiência com Getúlio Vargas. Ela ia pleitear um subsídio para o seu teatro que, naquela época se achava em construção. Ela raciocinava: “Eu vou incomodar o nosso grande Presidente com os pequenos problemas do meu insignificante teatro! Já na entrada do Catete me senti muito intimidada, e houve um momento em que quase desisti do encontro”.
Vejam bem: com essa forma que tomou o seu objetivo, ela só se podia sentir humilde. E tudo isso provinha da comparação do grande presidente com a “insignificante” Maria, da grande pátria com o insignificante teatro. Mas por que a insignificante Maria? Por que o insignificante teatro? Os problemas da Arte em nosso país não são mais importantes do que muitos, muitos outros problemas? Por que então essa insignificância? Para dar maior ênfase à minha idéia sugeri que Maria considerasse o seu teatro como o fator mais importante do mundo, que se compenetrasse da idéia de que a falta do seu teatro em São Paulo prejudicaria o futuro de gerações inteiras, que mesmo os problemas da miséria, da fome são menos importantes, etc. Convencida disso, em que estado de ânimo ela entraria no Palácio do Catete? Enquanto eu falava, os olhos de Maria brilhavam cada vez mais, e vocês precisavam ver com que infinito orgulho ela se ajoelhava perante o delfim e começou a falar: “Garboso delfim, eu, Joana D’Arc...” etc. Porque os problemas de Joana D’Arc tornaram-se grandiosos, empolgantes para a atriz Maria DelIa Costa. Mas não se deve esquecer que sempre há um perigo de confundir os objetivos do personagem que induzem o ator a agir como tal, com os objetivos do próprio ator que o induzem a se exibir, brilhar, como naquele caso que citei no início da segunda aula em que contei o que aconteceu comigo quando gravei uma cena de “Aquele que leva bofetadas”. Ao se apoiar no objetivo do personagem, o ator deve saber defini-lo numa forma simples e, por assim dizer, palpável para ele, usando para isso o verbo querer em nome do personagem. Certamente Maria DeIla Costa ao entrar em cena, deve ter pensado mais ou menos assim: “Eu quero que o delfim me obedeça, porque sou a única pessoa capaz de salvar a França!” Mas se, em vez disso Maria pensasse: “Eu quero fazer essa cena maravilhosamente! Quero sentir o orgulho no momento de me ajoelhar”. A que resultado ela chegaria? A uma ação completamente falsa. Um caso desses aconteceu comigo em “Os pequenos burgueses”. Na cena da briga de Bessêmenov com o seu afilhado Nil durante o almoço, só três meses depois da estréia da peça eu senti, numa noite, um verdadeiro pavor quando Nil bateu na mesa, porque naquele momento cheguei a pensar: “Agora ele vai me bater na cara!” Fiquei tão contente por ter encontrado com tanta clareza essa emoção de Bessêmenov que, na próxima noite estava muito preocupado em não perdê-la e, para isso no último momento pensei: “Eu preciso sentir esse medo!”
É claro que o resultado foi um verdadeiro fracasso: nunca fiz essa cena de maneira tão falsa, porque Bessêmenov não podia querer sentir medo, ele podia querer fugir da bofetada, e o resultado desse objetivo seria o verdadeiro medo.
Durante esta aula procuramos adquirir a noção do que é AÇÃO na vida real e quais são suas características. Na próxima aula procuraremos compreender como essa noção pode nos ajudar a AGIR em teatro.

3ª AULA

Como se lembram, na última aula, depois de constatar que a AÇÃO é o fator mais importante no trabalho de um ator, chegamos à conclusão de que devemos estudar as características da ação na vida real. Encontramos essas quatro particularidades que quero repetir:
1) A ação sempre obedece à lógica.
2) A ação é sempre contínua e ininterrupta.
3) Ela sempre tem simultaneamente dois aspectos: a ação interior e a ação exterior.
4) Não existe ação sem objetivo.
Tudo isso existe na vida real, e a noção disso é de extrema utilidade no trabalho do ator, ela o salva das dificuldades que podem parecer invencíveis. Mas é necessário saber como utilizar essa noção no nosso trabalho em teatro.
Já sabemos que em teatro devemos agir em nome do personagem (é fácil de dizer, hein?). Que devemos aceitar os problemas e os objetivos do personagem (Outra coisa fácil, não é?).
Bem, em primeiro lugar, devemos saber quem é o personagem em cujo nome estamos agindo; como ele é: bom, mau, jovem, velho, inteligente, burro; onde vive e por que vive; donde ele veio e por que veio; e, principalmente, o que é que ele quer. Tudo isso, em parte, se encontra na própria peça e é denominado por Stanislawsky com o termo CIRCUNSTÂNCIAS PROPOSTAS, termo que usaremos sempre como um dos elementos do Método.
Eu disse, “em parte se encontra” porque geralmente o dramaturgo é muito econômico em suas explicações e o que ele deixa de explicar deve ser completado pela nossa imaginação.
Por exemplo, quando encontramos uma rubrica como esta:
JOÃO - (ENTRANDO) Bom dia.
Nunca podemos limitar-nos a executar a ação como está escrito: entrar e dizer bom dia. Precisamos imaginar donde o João entra, o que aconteceu com o João antes, o que o João quer, porque o “bom dia” pode ser dito a uma pessoa a quem o João traz um presente ou a quem ele vai matar logo em seguida.
Quantas vezes, mesmo em bons teatros, por causa de uma pequena omissão nas CIRCUNSTÂNCIAS PROPOSTAS, muda todo o sentido de uma cena, de um ato e até da peça inteira. E não somos apenas nós, pobres mortais, que cometemos esses erros, os grandes mestres também os cometiam. Stanislawsky conta que num dos ensaios de “Tio Vânia”, A. Tchekhov ficou indignado quando notou que o intérprete do papel titulo estava vestido como um homem de campo. (Stanislawsky o imaginou assim porque ele era administrador da fazenda). A. Tchekhov disse: “Mas eu expliquei isso tão claramente, e vocês não entenderam nada”. E mostrou uma frase no meio de uma grande rubrica: “endireita sua gravata fina”. Realmente, dessa frase devia se tirar a conclusão de que Voinitsky não devia ter aspecto nem hábitos de um quase camponês, o que é de enorme importância para a peça inteira.
Assim Stanislawsky confessou que admitiu uma omissão e deixou de completar as “CIRCUNSTÂNCIAS PROPOSTAS” com sua imaginação.
Mas vejamos um exemplo bem simples. Como deve funcionar a imaginação de um aluno no trabalho com as “CIRCUNSTÂNCIAS PROPOSTAS?”
Digamos que o aluno receba como tema para o exercício o seguinte: “Eu vou pedir dinheiro emprestado a um amigo”. Só isso, nenhum outro detalhe. Para executar essa ação sem nenhum trabalho preparatório, o aluno dirá: “Fulano quer me emprestar um milhão?” A não ser a estranha leveza com que o personagem pede uma bolada dessas, nada de interessante encontramos nessa ação. Mas o aluno deve completar as circunstâncias com sua imaginação, dentro das características da ação que há pouco verificamos. Ele raciocinara da seguinte maneira:
1) A lógica da ação. Ao imaginar tudo o que podia ter acontecido com o personagem e que o levou a pedir dinheiro, vou tomar cuidado para evitar toda e qualquer contradição.
2) Ação contínua, ou seja, a anterior e a posterior. A personagem tirou esse dinheiro do caixa do Banco onde trabalha e deve depositá-lo novamente amanhã na primeira hora, se não será preso. Por isso precisa achar alguém que lhe empreste dinheiro. Notem: o seu “hoje” é estou pedindo dinheiro em­prestado; o seu “ontem” é tirei o dinheiro; o seu “amanhã” serei preso. Estará tudo certo do ponto de vista da lógica? Parece que sim. E continua:
3) Ação interna. Ele tem medo do que possa acontecer, mas não deve deixar o amigo perceber de que se trata, porque ele seria capaz de denunciá-lo.
Ação externa. O personagem tem que apelar para a calma: “Afinal de contas, não é uma coisa assim tão grave. Eu sei que vou me safar”.
E a lógica? Desta vez ela parece um pouco manca: como pode ele parecer muito calmo ao pedir um milhão? É preciso inventar um pretexto para justificar perante o amigo a sua natural excitação. Por exemplo, uma grande oportunidade comercial que ele perderia se não conseguisse esse dinheiro imediatamente.
4) Objetivo da ação. O personagem quer evitar a prisão não somente porque isso é desagradável para ele, mas porque tirou esse dinheiro para salvar a vida de sua mãe que está à morte e deve ser operada por um médico muito caro. Se ele for preso, essa desgraça vai matar a sua mãe.
Vejam como a forma que toma o objetivo desperta imediatamente a imaginação.
E quanto à lógica, há alguma falha? Parece que não.
É claro que muitos outros detalhes que deixo de procurar por falta de tempo, entrariam em jogo, mas digamos que o trabalho com as “circunstâncias propostas” seja considerado completo. Que fazer agora? Como começar a agir em nome do personagem? Como assumir os problemas e objetivos do personagem? Stanislawsky oferece um elemento que ele chama de: o mágico “SE FOSSE”.
Uma vez estabelecidas as “Circunstâncias Propostas” como no nosso exemplo, o aluno se pergunta: “E se eu fosse aquela pessoa? Se a minha mãe estivesse à morte? Se o único lugar onde pudesse arranjar dinheiro na hora fosse a caixa do Banco? etc., etc. Como eu iria agir?
Stanislawsky chama esse “SE FOSSE” de mágico porque ele realmente quase automaticamente desperta a VONTADE DE AGIR.
Mas digamos que isso não aconteça, que, apesar da máxima boa vontade em imaginar as coisas, o aluno não consiga agir como a personagem. Creio que isso só pode acontecer se o aluno interpreta mal a palavra “imaginação”.
O que significa imaginar coisas?
Leitor faça-me o favor de imaginar sua viagem à Lua. Você deve ter visto em fotografias ou em cinema as astronaves, tanto em vôo como em terra firme, e não deve ter dificuldade em imaginar os detalhes.
O foguete acaba de partir. Você está olhando em redor. Conte o que é que está vendo. Para avivar a sua imaginação, peça que alguém lhe faça perguntas sobre a sua viagem: o que vê dentro da cabine? O que vê pela janela? etc..., e responda com maiores detalhes possíveis.
Desta maneira você constatará que imaginar significa ver as coisas ausentes, inexistentes ou irreais.
Vamos fazer mais uma pequena experiência. Olha para um objeto, um rádio, por exemplo, e, sem tirar os olhos dele, responda as seguintes perguntas:
De que cor é o rádio? Tem algum detalhe em outra cor? De que material efeito? Para que serve aquele botão na frente? etc... E depois passe a responder, sempre sem tirar os olhos do rádio, uma outra série de perguntas: Onde ele foi fabricado? Como é essa fábrica? Como é a sala em que montam rádios? Quem está trabalhando na montagem? Como estão vestidos os operários? De que cor são os macacões? etc., e de repente: Este rádio tem algum defeito na pintura? Você vai constatar que, para responder a última pergunta, foi obrigado a tornar a ver o rádio que deixou de ver enquanto respondia as perguntas sobre a fábrica, embora continuasse olhando para ele.
Constatamos, portanto que vendo as coisas imaginárias, irreais, deixamos de ver as coisas reais que estão diante de nós, e vice-versa: basta prestar atenção as coisas físicas para que desapareçam coisas imaginárias. Isso nos mostra que podemos manobrar a visão física à nossa vontade no sentido de transformá-la em visão interior.
Desta maneira, a nossa imaginação adquire agora um aspecto menos abstrato, mais palpável para nós, atores: imaginar significa ver de maneira concreta o que nos é oferecido nas “Circunstâncias Propostas”.
Essa maneira de usar a “visão interna” Stanislawsky chama de VISUALIZAÇÃO.
Depois de recorrer ao mágico “SE FOSSE” e de perguntar: “Como eu estaria agindo?”, o ator procura visualizar essa ação.
O nosso colega do Teatro Oficina, Renato Borghi, na primeira peça encenada da inauguração do teatro na base profissional, “A Vida Impressa em Dólar”, fez o papel de Ralph Berger, filho de uma família judia muito pobre. O rapaz, apesar de estar ganhando um pequeno ordenado, nunca tem um vintém no bolso, ele entrega tudo o que ganha à mãe. Mas o intérprete do papel é filho de uma família abastada, ele nunca tem pequenas dificuldades financeiras e para ele não existem problemas como, por exemplo, levar sua namorada ao cinema. Ralph Berger tem uma noiva, mas nunca tem dinheiro para lhe oferecer um diverti­mento. Para fazer esse papel o Renato rico deve aceitar as circunstâncias em que vive o Ralph pobre. Como estaria ele agindo?
A título de exercício, nós imaginamos uma cena fora da ação da peça. Ralph e a noiva estão na rua. De repente a moça diz: “Ralph, leve-me ao cinema”. Eu perguntei ao Renato: “Que faria você se fosse o Ralph?” Antes de responder, Renato visualizou o pobre rostinho de sua noiva, visualizou a rua em que estava morando, visualizou o seu bolso vazio, chegou a ver uma curva da rua e, de repente agiu como Ralph, ele não pode conceber a coragem de confessar a sua pobreza, ele preferiu mentir e disse: “Vamos ao cinema amanhã, está bem? Eu me esqueci que já tantas vezes queria lhe mostrar a vista que se vê daquela curva. Vamos?”
O importante nesse exemplo é que, dentro da sua visualização, Renato se viu no lugar de Ralph; não o viu com os olhos de um espectador, e sim se viu agir no lugar de Ralph. A isso nós chamamos de visualização ativa, para diferenciá-la de uma simples contemplação.
É preciso tomar muito cuidado para não confundir as duas. Lembro-me de um aluno que, durante um exercício para o qual ele escolheu uma cena de ciúme, procurou pôr em prática o uso da visualização. O resultado foi lamentável: o seu terrível “homem ciumento”, parecia um palhacinho. Eu afirmei que ele não tinha visualizado coisa alguma. Para me provar o contrário, ele jurou que ‘‘tinha visualizado o personagem com tanta clareza que até podia ir tomar café com ele”. Vocês compreenderam? Esse “Otelo” que ele visualizou era um personagem que vivia completamente à parte, e ele, o aluno, não passava de um simples espectador.
E agora eu gostaria de citar um exemplo do efeito do uso da visualização sobre a interpretação de uma grande atriz.
Eu tive muita sorte em poder regravar para mim um disco norte-americano que ainda não se encontra no Brasil. Esse disco contém trechos principais dos filmes interpretados por Greta Garbo.
O que me impressionou particularmente e me fez lembrar uma cena em todos os seus detalhes foi um trecho da “Rainha Cristina”. Ao ouvir o disco eu tive a impressão de que a atriz estava utilizando a “visualização”. Desse trecho destaquei duas partes em que ela, depois de passar uma noite de amor, fala com Antônio, o embaixador espanhol junto a sua corte. O texto da primeira parte é o que se segue: “I’ve been memorising this room... In a fature... in my memory... 1 shell live a great deal in this room..
A Rainha Cristina procura reter na memória o aspecto desse quarto para depois usá-lo em suas recordações. Assim essa fala representa, como problema no trabalho do ator o uso da memória. E o que é memória se não a “visualização” do passado?
As reticências que vocês encontram no texto acima representam pequenas pausas. Quem assistiu a esse filme certamente se lembrará dos olhos de Greta Garbo: nas pausas eles olhavam para o futuro em que ela estaria vendo o passado.
A genial interpretação desse trecho, que nos fazia sentir todo o drama da pobre rainha, era certamente resultado dessa visualização.
Cito a segunda parte da mesma cena:
ANTONIO - Tell me, you sade you would, why had you come in this in this inn dressed in the man?
CRISTINA - In my home... I’me very constrained... Everything in arranged very formally....
ANTONIO - Ah!... A conventional household?
CRISTINA - Very.”
Depois da primeira fala de Antônio, Greta Garbo mantém uma pausa de seis segundos antes de começar a falar. As reticências representam pausas menores. A razão da pausa maior deve conter mil detalhes: a impossibilidade de revelar a verdade; a vontade de responder a pergunta, mas de uma forma que não a comprometa; a sensação do ridículo dessa situação; o protesto interior contra a vida que a obrigam a levar; a sua impotência de modificar as coisas e, ao mesmo tempo, a aceitação das condições de sua vida como de um compromisso de honra.., e muitos outros detalhes que eu não saberia citar. Tudo isso nós sentimos e tudo isso é resultado daqueles seis segundos.
No final, antes de responder: “Very”, há também uma pequena pausa que deve ser resultado de uma “visualização” muito complexa e cujo resultado poderíamos chamar, simplesmente, de triste resignação da rainha. Com os poucos elementos do Método, que até agora conhecemos, podemos fazer algumas experiências com seu uso.
Mas primeiramente vamos estabelecer como vamos usar esses elementos. Digamos que o assunto escolhido seja bastante simples: um rapaz (ou uma moça) escreve uma cartinha para sua namorada (ou namorado) marcando um encontro. Terminada a carta, ele a dobra, põe no envelope e sai para enviá-la. (Para fazer esse exercício procurem não usar objetos reais, papéis, caneta, deixem tudo à sua imaginação, usem coisas imaginárias).
Por onde vamos começar? Em primeiro lugar, temos que analisar o assunto para compreendê-lo claramente. Isto significa: compreender as “Circunstâncias Propostas” e completá-las com a nossa imaginação. Quem é o personagem? Ele é jovem, velho, bonito, feio, inteligente, burro, rico, pobre?... Quem é a namorada? Como ela é? Em que pé estão suas relações? Quais são as suas intenções? O que é que ele escreve na carta? O que é que ele alega para marcar o encontro? (Se é que ele não usa de absoluta franqueza) O que é que ele pretende na realidade?... Não esquecer o controle lógico desses detalhes.
Sabendo que se trata de um exercício, não devemos esquecer que temos que transformar em “Ação” o resultado da análise das Circunstâncias Propostas, que acabamos de fazer.
1 - Verifiquemos se os detalhes por nós estabelecidos obedecem à lógica, se não há algum absurdo ou contradição e não deixemos de examinar através da lógica, todos os detalhes do trabalho posterior;
2 - Sabendo que a ação deve ser contínua, temos que agir mentalmente no que se passou antes de começarmos a escrever. Como se passou o último encontro? Houve alguma coisa que deva ser corrigida ou completada no próximo encontro? Houve alguma conversa por telefone?... E depois: Que vai acontecer depois do encontro? O que é que preciso evitar ou conseguir?...
3 - Pensando na Ação Exterior desse exercício, devemos exercitar com a máxima atenção a nossa ação física: sentir a realidade da presença do papel na mesa, da caneta na mão, do movimento da pena e o aparecimento das linhas escritas, etc.
4 - Pensando na Ação Interior, devemos ter presentes pensamentos naturais que acompanham a ação física; ao segurar a folha de papel: “Será que o papel é barato demais? Será que não devia ser mais bonito?...” ao segurar a caneta: “Esta pena arranha um pouco. É bom experimentar antes...”. Antes de começar a escrever: “Preciso encontrar palavras que a convençam... que a comovam... Vou escrever assim!... Ao escrever pare para reler, pensando: “Será que saiu bom?”; ao fechar o envelope, imagine o rosto dela quando estiver lendo, etc., etc...”.
5 - Pensando no Objetivo da Ação, estabeleça o que o personagem quer que aconteça (o que representará a sua vontade) e o que ele não quer que aconteça (ou seja, a sua contra vontade). Completada essa parte do trabalho, devemos perguntar a nós mesmos: “Se eu fosse” esse rapaz, se eu tivesse uma namorada tão bonita e desejada, se eu tivesse a esperança de conseguir o encontro que agora vou pedir, como eu estaria escrevendo a carta? Complete isso com outras perguntas que julgar úteis para levá-lo à vontade de escrever, e quando chegar a sentir essa vontade, basta começar a agir escrevendo.
6 - Mas digamos que contra toda a expectativa, não chegue a sentir realmente essa vontade, recorra a “visualização”, e isto é: repasse alguns detalhes do trabalho anterior, na base da “visualização”, materialize os seus pensa­mentos em forma de visão  interna. Por exemplo, quando você se pergunta quem é a namorada, como ela é, procure “vê-la” em maiores detalhes, até que chegue a sentir realmente a atração por ela; quando pensar no próximo encontro, visualiza-o em todos os detalhes para sentir a necessidade de pedir esse encontro; e, principalmente, quando estiver pensando no Objetivo da Ação, isto é, no que o personagem quer que aconteça, e no que ele não quer que aconteça, procure materializar esses objetivos ao máximo, através da “visualização”. E não esqueça que só poderia conseguir algum resultado positivo, se a sua “visualização” for ativa, ou seja, se você conseguir se ver agindo dentro das circunstâncias que visualiza, se você chegar a ver a si próprio agindo. E não fique decepcionado se, apesar de todo o esforço, não conseguir o resultado desejado. Lembre-se que você está apenas no início da leitura de uma matéria cujo estudo prático exige muito tempo.
Nas páginas seguintes você encontrará outros elementos do Método que certamente, lhe facilitarão as experiências. E agora, concretizando o que acabo de expor, podemos estabelecer em que ordem aproximadamente devemos usar esses elementos:

CIRCUNSTÂNCIAS PROPOSTAS
AÇÃO
LÓGICA DA AÇÃO
AÇÃO CONTINUA
AÇÃO INTERNA
AÇÃO EXTERNA
OBJETIVO DA AÇÃO
O MÁGICO “SE FOSSE” VISUALIZAÇÃO ATIVA

4ª AULA

Na última aula estabelecemos a diferença entre visão física e a visualização; compreendemos que a visualização deve ser ativa, o que quer dizer que o ator deve agir dentro das circunstâncias visualizadas por ele, e então propomos que realiza essa ação em forma de exercício.
Se o leitor faz a experiência proposta vai se lembrar que foi a visualização dos detalhes mais ligados aos objetivos da personagem, a sua maior preocupação.
Eu digo a visualização dos detalhes porque um quadro geral dá uma idéia geral sobre os objetivos, mas nós freqüentemente precisamos levar os objetivos às últimas conseqüências para poder realizar a ação com a força necessária, e para isso, temos que aguçar os nossos sentidos. Quando, na aula anterior, aconselhando o uso da “visualização”, propus ver a namorada com maiores detalhes, vocês devem ter feito um esforço para prestar atenção a este ou a aquele detalhe da sua imaginária namorada, para assim sentir mais a sua atração.
Na vida real, a palavra “atenção” é usada quando se exige de uma pessoa a maior dedicação ao trabalho que faz, como antônimo de “distração”. A uma datilógrafa se diz: “Preste mais atenção quando escreve se não vou despedi-la”. Geralmente essa ameaça é suficiente para que a datilógrafa deixe de pensar no seu namorado e escreva melhor. Experimente dizer a mesma coisa a um ator que por estar distraído representa mal: “Preste atenção, se não eu o ponho na rua”. Mesmo se o ator tiver muito medo de perder o emprego, a ameaça por si só pouco adiantará. Não será o medo que o fará representar melhor.
A única possibilidade de ele fazer com que a sua atenção volte a funcionar, é interessar-se pelos objetivos do personagem. Só assim a sua atenção será realmente espontânea. É isso que, em nossa linguagem, se chama “ATENÇÃO CÊNICA”, para diferenciá-la da atenção em geral. E a melhor maneira de usar a atenção cênica e dirigi-la aos detalhes mais atraentes, mais excitantes. Espero que ao fazer o            exercício experimental, os meus alunos possam sentir a utilidade do uso da Atenção Cênica na forma que aconselhei. Essa redução do quadro geral em apenas alguns detalhes, e vice-versa, a ampliação do campo de visualização, é exercido no nosso trabalho através do uso de um elemento do Método denominado “CÍRCULOS DE ATENÇÃO”.
A idéia desse elemento veio da comparação com certas características da nossa visão física O olho humano abrange um campo de visão de quase 180 graus. É fácil constatar isto na prática. Estendam os braços para frente e depois lentamente afastem as mãos uma da outra olhando sempre para frente, procurem notar até que momento ainda estarão enxergando as mãos. Parando o movimento naquele momento, constatarão que a linha dos braços forma quase uma linha reta. Querendo ver detalhes das mãos, quase perdemos a visão do que está na frente, mas basta prestar muita atenção ao que se acha na nossa frente, isto é, querer ver o que está na frente, para que quase desapareça a visão das extremidades.
Quem quiser poderá fazer esta experiência. Isso nos prova que podemos manobrar os Círculos de A tenção da nossa visão física à nossa vontade. O mesmo acontece com os Círculos de Atenção na Visualização, com ainda maior vantagem de podermos, com isso, quase eliminar nossa visão física. Se vocês fizerem a experiência aconselhada na segunda aula, isto é, o papel de um cego, terão o exemplo do uso dos Círculos de Atenção que foram usados na Visualização do chão com seus obstáculos e que chegaram quase a eliminar a visão física.
Isso explica também a facilidade com que o ator, olhando para a platéia, consegue ver o que se passa nas Circunstâncias Propostas: em vez de mar de cabeças, ele vê um lago com cisnes nadando, etc. O uso dos Círculos de Atenção, além de sua enorme utilidade no trabalho preparatório, muitas vezes salva o ator em uma cena aberta.
Durante um dos espetáculos de “A Vida Impressa em Dólar”, aconteceu-me uma verdadeira calamidade. Um pouco antes do início de uma das cenas do meu papel, quando eu sem falar, assistia ao diálogo dos outros (o que me ajudava como preparação para a minha cena) de repente ouvi atrás de mim, à distância de um metro, (vocês conhecem o Teatro Oficina?) uma conversa, quase em voz alta entre duas pessoas completamente bêbadas... Senti-me tão perdido que por pouco não sai de cena. Mas naquele momento eu vi no chão os dois sapatos de “Ralph Berger” deixados lá pelo seu intérprete; um dos sapatos estava virado de sola para cima e era tão gasto que a sola tinha um furo aberto de uns 3 centímetros. Pois bem, naquele momento veio-me a idéia dos “Círculos de Atenção”. Por um instante surgiu esse termo do Método como uma tábua de salvação, mas, logo em seguida, eu comecei a agir como Jacob: primeiro procurei certificar-me se realmente se tratava de um furo tão grande: “Como poderia Ralph andar com esses sapatos na rua?” E depois eu vi milhões de rapazes andando com sapatos assim pelo mundo inteiro. Toda a indignação e a revolta conseqüentes dessa visão ajudaram-me a fazer a cena talvez até melhor do que de costume e é claro que eu esqueci completamente o casal bêbado.
Agora vejam a mecânica disso (que, naturalmente, só mais tarde eu pude analisar): Primeiro eu fechei o Circulo de Atenção da visão física sobre o furo e depois abri um enorme Circulo de Atenção da Visualização sobre o mundo inteiro. A Atenção Cênica com seus “Círculos de Atenção” leva o ator ao “Contato e Comunicação” com o ambiente, isto é, com todos os elementos do espetáculo.
“Contato e Comunicação” é mais um termo do Método.
Na vida real o contato e a comunicação com o ambiente são tão permanentes e ininterruptos quanto à própria ação, e tudo quanto dissemos a respeito da ação na vida real, é perfeitamente aplicável a “Contato e Comunicação”. Nunca deixamos de estar em contato com o ambiente na vida real: através dos nossos cinco sentidos, nos comunicamos com tudo o que se encontra em redor de nós, tanto com os seres vivos como com as coisas inanimadas, ou imaginárias. E se na vida real a falta de contato e comunicação seria um absurdo inconcebível (a não ser que o personagem fosse um cadáver), como podemos admitir isso em teatro?
Que fazia Salvini quando, já vestido e maquiado, andava pelos cenários desertos? Ele procurava o contato com o ambiente. Como vocês sabem, nem todos os atores fazem isso, alguns violam a ação interrompendo o contato com o ambiente, uns deliberadamente, outros por acaso. Há muitos exemplos disso: o ator resolve “descansar” em cena porque não toma parte no diálogo. Ele se permite pensar nas suas coisas particulares e, às vezes, age nesse sentido até fisicamente: tira do bolso sua pequena agenda para verificar os compromissos para o dia seguinte; o ator não presta atenção às falas dos outros, não as ouve. No amadorismo isso acontece porque o ator, em vez de ouvir, fica preocupado com sua próxima fala; em teatro profissional, porque o ator fica preocupado com a maneira de representar de seus colegas. Lembro-me de uma atriz cujos lábios se moviam em sincronização com as falas de uma colega. É claro que sua reação a essas falas era completamente falsa, porque não podia haver nenhuma surpresa para a personagem; O ator procura contato com a platéia por vaidade, por exemplo: uma imagem, por exemplo, com um refletor apagado, que o deixa no escuro, com um móvel ou um objeto fora do lugar, etc... É uma verdadeira tortura contracenar com um colega nessas condições: o seu olhar oco faz a gente também perder o contato com o ambiente; o ator procura contar com a platéia por vaidade, por exemplo: uma atriz preocupada em exibir seus dotes físicos.
Quero frisar bem que o contato e comunicação com a platéia é um fator não somente inevitável, como também útil. Já dissemos que, ao encarnar um papel, a pessoa do ator não desaparece. O ator apenas aceita todos os problemas do personagem, assume todas as responsabilidades e, adquirindo através disso, fé na realidade da existência do personagem, age e vive como ele. Final­mente, o ator faz o personagem existir como um ser real, mas ele também continua a existir ao lado do personagem, controla sua ação como um espectador ativo que é capaz de corrigir os erros do personagem, ou elogiar suas qualidades.
Daí o permanente contato do ator com a platéia. Essa coexistência do ator com a personagem, Stanislawsky chama de “Dualidade do ator”.
É impossível explicar em termos palpáveis a mecânica disso, mas felizmente eu tenho na minha memória um caso que prova a realidade desse fator.
Durante a nossa segunda aula eu lhes contei o que me aconteceu com a gravação de uma cena da peça “Aquele que leva bofetadas”, peça que eu fiz com um ator russo genial de nome Pevtsov. A sua interpretação chegava a verdadeiros milagres de arte dramática. Ele conseguia convencer não somente os espectadores, mas também os seus colegas de cena. É difícil de acreditar, mas é verdade.
É preciso dizer-lhe que na cena a que vou me referir, há um momento em que “aquele” (é o apelido do personagem feito por Pevtsov) chega a decisão de se matar, matando também Consuelo, a moça que ele ama. Nessa cena, Mancini (o meu papel), num grande monólogo, descreve o seu brilhante e rico futuro depois de conseguir vender a sua filha adotiva, Consuelo. É nesse momento que, atraído pelo olhar estranho do “aquele”, que olha para o espaço, Mancini interrompe a sua fala e pergunta: “Você está rindo?”, e quando “aquele” responde: “Não”, ele continua seus devaneios. Pois bem, quando eu olhei para Pevtsov, não sei o que aconteceu: eu vi a morte nos olhos dele... Fiquei tão perturbado que esqueci onde estava, o que devia dizer... Devo ter feito uma pausa enorme, porque naquele momento, ouvi Pevtsov dizer baixo e quase sem mexer com os lábios: “Você vai falar ou não?” Isso me fez literalmente acordar e eu continuei a cena. Pensem nos detalhes desse fato: se eu fiquei tão perturbado, é porque vi na minha frase não o ator Pevtsov, mas o personagem real, com todos os seus problemas trágicos. Mas ao lado desse personagem real e vivo, estava o ator, também vivo e assustado com a atitude de um jovem colega atrapalhado.
Repito, não sei como isso funciona, mas sei que os que vão fazer teatro profissionalmente um dia vão ter essa sensação de dualidade e vão sentir o enorme prazer que isso dá.
O termo “dualidade” desmente totalmente as acusações que os menos avisa­dos ainda fazem a Stanislawsky de ter ele sido adepto da encarnação mística, da transformação misteriosa do ator em personagem. O próprio Brecht no fim de sua vida retirou muitas dessas acusações.
Quanto a mim, nunca pensei que o fator “distanciamento” (ou afastamento, como costumam dizer alguns), estivesse fora do alcance do Método de Stanis­lawsky. Pelo contrário, no meu trabalho nas peças de Brecht o que me ajudou nas soluções de problemas foi exatamente o uso de alguns elementos do Método e entre eles em primeiro lugar, a LÓGICA DA AÇÃO e o CONTATO E COMUNICAÇÃO COM O AMBIENTE, isto é, com todos os elementos do espetáculo inclusive, bem entendido, com a platéia.
Quando fiz a “Ópera dos Três Vinténs”, um critico me disse sorrindo: “Kusnet, você está ficando especialista em Brecht”, ao que eu respondi: “É, meu velho, na base de Stanislawsky”. E ele não estranhou, porque realmente conhece os dois.
Mas, voltemos ao “Contato e Comunicação”. Seus meios podem ser divididos em físicos e mentais. A existência dos primeiros é evidente para o espectador: gesto, voz, atitude corporal, mímica, olhar, mas a existência dos meios mentais, espirituais, o espectador só pode constatá-los pelo efeito que eles causam sobre ele. Há muitos exemplos disto: um ator que faz uma cena de costas para a platéia, em absoluta imobilidade e que apesar disso, nos transmite com grande intensidade sua ação interior; ou em cinema: “close-up” de um rosto completa­mente imóvel; ou os olhos de ator “vistos” à distância de 100 metros.
Não há explicação material para esses efeitos, mas a sua existência é indubitável. Stanislawsky chama a isso de IRRADIAÇÃO: parece que dos olhos, de todo o corpo do ator sai uma espécie de tênues raios luminosos e que atingem o espectador. Há quem explique isso como uma espécie de hipnose e talvez tenha razão, não importa, o importante para atores é que isto existe e que representa uma boa arma em nossas mãos porque é um resultado palpável da nossa ação puramente mental.
Oportunamente veremos como esse elemento se usa no trabalho com um papel. Com o conteúdo desta aula completamos uma série de elementos do Método, que, depois de estudados na base de constantes exercícios, representará uma boa “bagagem” para um ator que começa a sua primeira viagem profissional.
Gostaria muito que vocês se prestassem à experiência com exercícios inventados e ensaiados na base do que experimentaram anteriormente a esta aula. Se tiverem dificuldades em encontrar um assunto, usem um dos exercícios que em seguida vou lhes propor. Eles são fáceis porque podem ser feitos sem uso de falas:
- Um alcoólatra, ex-ator vai ver o teatro em que trabalhou há dez anos e o encontra em ruínas: o teatro foi demolido. Ele anda pelos restos de palco, vai ver o seu camarim, etc...
- Um aleijado, rapaz jovem e bonito que perdeu as duas pernas num desastre, vende bilhetes de loteria no Largo da Sé. Vendo uma jovem que lhe sorri, esquece o seu estado e começa o namoro de olhares quando a moça baixa o olhar e percebe que ele é um aleijado.
- Uma mulher feia esperando num jardim público um homem que lhe telefonou marcando um encontro. Ele não aparece, mas ela vê um rapaz que ri observando-a, ela volta para casa e se olha no espelho.
Notem que os temas são tão primitivos que qualquer exagero transformaria os exercícios em dramalhões de rádio-novela. Por isso pensem nos objetivos do personagem, procurem agir com a máxima lógica nuca se preocupando com o aspecto da sua interpretação: pensem no seu “ontem” e desejem chegar ao “amanhã”.

5ª AULA

Como de costume quero lembrar-lhes que na quarta aula, tratamos de tomar mais detalhado o uso de elemento chamado “visualização” e para isso, introduzimos o uso da “atenção cênica” com seus “círculos de atenção” e “contato e comunicação com o ambiente”. Ao citar várias formas desses elementos, descobrimos o que Stanislawsky chama de “dualidade do ator”, elemento este que se revela no contato e comunicação com a platéia e, em vários momentos se transforma em “irradiação”. Ao falar dos meios de contato e comunicação, dividimo-los em dois grupos: interiores e exteriores, porque esses meios representam apenas uma das formas da ação e devem, como a própria ação, obedecer à lógica, à continuidade e aos objetivos.
Entre os meios exteriores citamos a voz, a fala. Esse meio é um dos mais importantes para nós que fazemos “teatro falado”. Vale, pois a pena estudar as leis que regem a fala humana na vida real para usá-la corretamente em teatro. Um dia eu perguntei a um aluno: “Que horas você acordou esta manhã?” Antes de responder à pergunta, ele disse: “Deixe ver...” Em seguida ele olhou em direção da janela da sala de aulas e disse: “Mais ou menos as oito”. “Quando você acordou, olhou para o relógio?”; perguntei eu. “Não, vi a hora pelo raio de sol na parede”.
Analisemos um pouco, este pequeno diálogo. Depois de ouvir a minha pergunta, o aluno disse: “deixe ver...” E foi realmente o que fez: para responder, ele precisou “ver” o ambiente em que acordou, “ver” a janela e a parede do seu quarto (daí o olhar instintivo para a janela da sala de aulas), “ver” a mancha da luz solar, para em seguida; calcular a hora na base da experiência cotidiana, o que equivale a “visão” dessa mancha solar nos muitos dias anteriores.
Assim podemos concluir uma coisa simples, mas de enorme importância no nosso trabalho: antes de começar a falar, nós imaginamos o que vamos dizer, e só depois transformamos essas imagens em palavras. Ouvindo outras pessoas falar, passamos por um processo inverso: primeiro ouvimos uma combinação de sons que são as palavras, mas, em seguida, esses sons se transformam no nosso cérebro em imagens.
Através desse raciocínio, entramos em contato com mais um elemento do Método - A Visualização das Falas. Que nos ensina como ouvir a fala em cena. É simples, não é? Parece impossível proceder de outra maneira, não é? Por que então em teatro muitas vezes acontece o contrário? O ator em vez de ouvir a fala do outro vê as palavras da sua próxima fala, literalmente lê as palavras escritas na sua mente. Age ele, naquele momento, como personagem? Claro que não. Ele é menos do que um espectador é um simples leitor da obra.
Na aula anterior, citamos isso como um caso típico de teatro amador, mas o teatro profissional não está isento dessas falhas. Casos semelhantes ao que contei na aula anterior são freqüentes em nosso teatro. Aquela atriz que devia ouvir para depois ver o que acabava de ouvir e que, em vez disso dizia simultaneamente, com sua colega, as palavras do outro papel, violava as leis da natureza, eliminava a ação do personagem. O resultado dessa maneira de representar foi maravilhosamente demonstrado por Fernanda Montenegro e Sérgio Brito em “Os Ciúmes de Um Pedestre”, de Martins Penna. Há um trecho em que eles dialogam:
ELA - Agora que te ouvi, ouve-me também. Fecha todas as portas prega-as, calafeta-as, rodeia-me de todas as cautelas, que eu hei de achar uma ocasião para fugir!
ELE - Tu?
ELA - Eu!
ELE - Ah!
ELA - Sim!
ELE - Daqui?
ELA - Eu...
ELE - Ha-Ha!
ELA - Irei!
Quem assistiu a esse espetáculo, deve se lembrar da precisão de tiros de metralhadoras, com que esse diálogo foi pronunciado, porque os atores (os do tempo de Martins Penna é claro) só estavam preocupados em demonstrar a sua dicção e suas vozes impostadas, excluindo por completo toda a possibilidade de se ouvirem um ao outro. O resultado foi uma estrondosa gargalhada na platéia. Mas para sentir o efeito do contrário, isto é, do efeito do uso da visualização das falas, gostaria que meus leitores que tivessem tido a sorte de assistir o filme “Anna Karenina” com Greta Garbo se lembrassem de uma cena em que o príncipe Vronski, depois de chegar à conclusão de que deve romper com Ana, se alista num regimento que vai lutar na guerra de Sérvia contra a Turquia. O diálogo começa assim:
VRONSKI - Anna…This letter is’nt from my mother.
ANNA - No?
VRONSKI - Trat is from Lashvin.
ANNA - Well?
VRONSKI - Well, I... I’ve been wanting to telI you for some time. I... promised lashvin to... Inlist in a war.
ANNA — What war?
As duas primeiras palavras que Anna pronuncia, “No” e Well” são de quase absoluta indiferença, porque da visualização conseqüente das falas de Vronski, ela não pode extrair nada que a possa inquietar: “A carta não é de minha mãe” e “Ela é de Lashvin”, mas quando ela ouve a fala: “Eu prometi a Lashvin me alistar na guerra” e visualiza o seu significado, o efeito é indescritível. Ela não grita quando pergunta: “Que guerra?”, continua quase imóvel, mas a repentina angústia que nós sentimos, inclui emoções tão complexas, que um espectador fica aturdido e esmagado por elas e um homem de teatro levariam muito tempo para analisar uma pequena parte de sua visualização”.
Você, meu leitor, talvez pergunte: “Mas como é que se pode saber que isso foi resultado da visualização das falas de Vronski?”. Realmente, não tenho nenhum elemento para afirmar isso, só Greta Garbo nos poderia dizer a verdade. Mas que importa? Se isso foi apenas o resultado de sua genial intuição, não nos adianta procurar analisar a mecânica de seu gênio, já sabemos que isso é impossível, mas se supormos que a visualização tivesse feito parte de seu trabalho (e é o que eu sinceramente suponho), então bastaria analisar, nem que fosse uma pequena parte das imagens prováveis dessa visualização, para que pudesse tirar disso um enorme proveito, pois através do uso dessas imagens poderíamos chegar a uma pequena parte do resultado que ela, Greta Garbo, consegue, o que para nós seria muito.
Através de constantes exercícios o ator adquire a capacidade de ouvir em cena, isto é, visualizar as falas ativamente, agindo e reagindo de acordo com o efeito da visualização. Essa atividade se desenvolve em forma de comentários do personagem (notem bem: do personagem, não do ator) sobre o que resulta da visualização das falas.
Em resumo, com o uso da visualização das falas, o ator elimina muitas dificuldades no seu trabalho preparatório, seja nos ensaios, seja no seu trabalho pessoal em casa, bem como consegue evitar dificuldades que possam surgir em cena aberta. Muitas vezes acontece que o ator perde, por uma ou outra razão, o          contato com a ação do personagem. Há várias maneiras de remediar essa situação, e entre elas a que citamos, há os Círculos de Atenção, mas quando isso acontece durante um diálogo, é mais fácil recorrer à Visualização das falas. Aqui convém abrir um parêntesis para esclarecer uma possível dúvida quanto ao uso dos elementos do Método em cena. Normalmente isso traz resultados negativos. O ator que, estando em cena, chega a pensar: “Agora eu vou usar a visualização da fala de Teterev!”, ou “Agora seria útil fechar o Círculo de Atenção sobre o sorriso de Teterev”, esse ator nunca poderá logo agir como personagem, porque o pensamento é do ator que precisaria de uma boa pausa para assimilar o efeito do uso desse elemento. O personagem não pode estar evocando o nome do mestre Stanislawsky. Em vez disso, ao ouvir a fala do Teterev, ele deve pensar: “Esse maltrapilho se atreve a falar assim com minha mulher!... Ah! Agora ele vai ver”. Ou então, prestando a máxima atenção à expressão do rosto de Teterev, pensar: “Ah!, está achando graça? Muito bem! Agora você vai é chorar!”
Essa confusão geralmente acontece com os atores que se dedicam muito ao estudo do Método, mas ainda não tem prática suficiente para usá-lo correta­mente. Com permissão do meu amigo Abrão Farc quero contar um exemplo seu. Fazendo um papel de um camponês nordestino na peça de Guamieri “O Filho do Cão”, ele estava muito preocupado com a realização de uma cena em que o personagem tem medo de descobrir que a criança recém-nascida seja “filha do Cão”, porque tem pés de bode. Pois bem, ao levantar o paninho que cobria a cestinha da criança, Abrão chegou a pensar em cena durante o espetáculo: “Agora eu preciso visualizar os pés da criança” (porque, é claro, não havia nenhuma criança dentro da cesta). é natural que depois disso ele não poderia sentir efeito da verdadeira visão do personagem. Os elementos do Método devem ser usados durante o trabalho prepara­tório; nos ensaios, no trabalho em casa. O efeito de seu uso, no inicio é muito lento, mas, com o correr dos ensaios, toma-se cada vez mais costumeiro, transformando-se, pouco a pouco, em ação instantânea como na vida real. Se no início do trabalho preparatório Abrão precisasse olhar dez minutos para os imaginários pés da criança e só depois começar a sentir o pavor do personagem nos últimos ensaios e nos espetáculos ser-lhe-ia suficiente um rápido olhar para chegar ao mesmo resultado. Mas quando eu digo que o uso desses elementos em cena podem salvar o ator, é porque naquele momento ele já está perdido, já está fora do personagem. Então, se naquele momento, ele age como ator, pensando: “Vou usar a Visualização das Falas”, não causa com isso mal maior, porque a ação já foi cortada, e se ele conseguir realmente interessar-se pelas falas, ele restabelece a ação perdida. Lembram-se do que contei quando estávamos falando dos Círculos de Atenção: o sapato de Ralph que me salvou da influência desastrosa de uma conversa na platéia?
Resumindo: usem os elementos antes de entrar em cena e sintam o seu efeito em forma de ação em cena. Além do beneficio que traz o uso dessa simples lei da fala humana, nós atores lucramos muito estudando outras particularidades dessa forma de ação.
O que nos interessa não é somente o sentido das palavras que compõem a ação de falar o som, a combinação dos sons é também de enorme importância para o nosso trabalho: quanto mais expressiva for a palavra pela sua sonoridade, mais ela facilita a expressividade da ação de falar. Conhecem a origem da linguagem humana? O homem primitivo começou por emitir os sons da natureza. Creio que para avisar a um outro que vinha temporal, ele imitava o Trovão, T-r-r-r-r-r-r-r. . . e quando queria silêncio dizia: S-s-s-s-s... ou Ch-ch-ch... Essa imitação pouco a pouco se transformou em palavras como: Trovão, Silêncio. É interessante notar que a influência dessa            imitação dos sons da natureza se conservou na formação de muitas palavras quase em todas as línguas, por exemplo: trovão, donner, tonnerre, thunder, grom (em russo). A letra “r” está presente em todas elas. É mais fácil notar isso comparando as duas línguas, mais distantes pela sua origem, o russo e o português: Grosnar - Kárkat (em russo) Trombeta – truba (em russo) Tambor – barabán (em russo). Notem que a formação das duas últimas palavras entra, tanto em Português como em Russo, os sons “b” e “r”. B de “bum” e R de “tran” e ainda para completar o aspecto onomatopéico, entra o som M ou N. As vogais também são de grande importância: Bum, bom, bam, bim. E vejam como esses sons caracterizam os nomes de instrumentos musicais: tuba, trombone, castanhola, em russo esses nomes são usados com as mesmas raízes latinas. É interessante comparar o efeito do som U nas duas línguas: turvo - mutniy (em russo) crespúsculo – sumrak (em russo), luto – traur (em russo), é curioso que para o significado de “nuvem”, em russo há duas palavras: oblako - nuvem branca, e tutcha - nuvem escura. É claro que nem todas as palavras têm origem onomatopéica e todas elas tem essa expressividade de sons. O importante para nós é saber que esses valores existem e que são de grande utilidade em nossa arte. Um poeta russo, Balmont, procurou exemplificar o sentido dos sons por meio de algumas poesias que ele criou expressamente para esse fim. Vou dizer alguns trechos sem traduzi-los em português porque o interessante para nós é o sentido dos sons e não das palavras: “1 vsdóh paftariaia paguibchei duchi, Tchut slichna beschumna churchát camichi”. Vocês sentiram o significado dos sons “S” e “CH”. E agora um outro: “Na verchínie górnai córchum prokritchál...” é o sentido som “R”. “Slódki skolznúla vesló... Miliy, móy miliy pridi...”, aqui o som predominante é o “L”, que nós encontramos nas palavras “love”, em inglês, “liebe”, em alemão, “liubóv”, em russo, e surpreendentemente só nas línguas latinas é que predomina o som “R”: “amour, amore, amor”. Deve ser porque os latinos amam “terrivelmente, estrondosamente”. Balmont assinala isso como a única acusação contra as línguas latinas.
Nos pequenos exemplos que acabo de citar, certamente notaram como o valor dos sons pode ajudar na transmissão de uma determinada idéia, de uma determinada emoção. Para exemplificar isso, eu traduzi em português o primeiro dos trechos cita­dos que agora repito: “1 vsdóh paftariaia paguibchei duchi,
Tchut slinchna deschúmna churchát caminchi”,
A tradução é: “E cessa o suspiro de um ser que perece,
E as plantas sussurram sem som, sem sentido”.
Que sensação vocês tem ao ouvir esses sons? Sensação de silêncio, de tristeza, de mistério, de nostalgia. E se precisassem transmitir à platéia essas sensações, os sons por si facilitariam a tarefa.
Mas para traduzir o sentido da poesia, poderíamos usar outras palavras. Por exemplo:
“E rompendo o rumor da marcha da morte,
As ervas ressoam irreconciliáveis...”
Que sensação vocês têm agora? De silêncio? De tristeza? Não, de rancor, de raiva, de horror. Teriam muita dificuldade em transmitir a idéia de silêncio com esses sons. Mas teriam toda a facilidade em transmitir o rancor.
Resumindo: constatando o enorme benefício que traz o uso adequado dos sons, o ator nunca deve esquecer ou desprezar o valor desse elemento, mesmo quando lhe parecer que outros elementos lhe sejam suficientes. É preciso acostumar-se a apreciar os sons, usar esse valor sem esforço, por simples hábito, é preciso aprender a amar a sua língua, apreciar a sua expressividade. Vejam, por exemplo, como é expressiva a palavra “insignificante”. E sabem como é em russo? “Nieznaichitelniy”. Não sentem que elas têm a mesma expressividade dos sons? E, entretanto, quantos atores a pronunciam sem sentir esse valor. Por outro lado, como são felizes os atores que sabem sentir e encontrar no texto, sons que lhe ajudem a interpretá-lo. Claire Bloom em “Romeu e Julieta”, encenado pelo “Old Vic”, na cena da sacada, nos dá um exemplo disso. O trecho a que me refiro é o seguinte: “My bounty es as boundless as the sea; My love is deep; the more 1 give to thee, “The more 1 have, for both are infinit.” Esse infinit, ela pronuncia com cinco “enes”: “innnnnfinit”. . . o que comunica a fala realmente em sentido de movimento para o infinito. Houve muitos exemplos disso no excelente espetáculo “Diário de um louco” de Gogol, criado por Rubens Corrêa na direção de Ivan de Albuquerque. Entre muitos exemplos, gostaria de citar um que me impressionou particularmente.
Quando Papristchin conta que, no escritório da repartição, ele acabou            assinando um documento com o nome de “Ferrrnando Oitavo”, esses três “erres” que ele pôs na pronúncia ajudaram-no muito no problema de transmitir a firmeza do “novo monarca espanhol” em que a loucura transformou o pobre empregadinho público. Entretanto, quando, num outro trecho, depois de espancado no hospício, ele responde ao “Grande Inquisidor” (que na realidade é um funcionário do hospício) com toda a humildade: “Mas eu sou Fernando Oitavo!..”, o único erre do nome torna-se quase imperceptível. Há pouco eu disse que o ator deve acostumar-se a usar o valor sonoro do texto, sem esforço, por hábito, instintivamente. Isso me faz lembra um caso quase anedótico, que me foi contado por Brutus Pedreira que fez parte da organização do teatro “Os Comediantes” sob a direção de Zienbinsky. O caso que quero contar aconteceu com a conhecida atriz polonesa, Stepinska que trabalhou no elenco. Durante um ensaio ela pronunciou: “E as arvóres em flor..” Brutus corrigiu: “Árvores”, ela olhou friamente e disse: “Não senhor, arvóres! “Brutus insistiu: “Stepinska, eu sou brasileiro, eu sei como se deve pronunciar: árvores. “Não senhor, você está muito enganado: arvóres!” Mas por que? “Porque é mais bonito”. E não acham que é mesmo? Isto é que é o hábito de procurar a beleza na sonoridade de uma língua.
Mas voltemos ao inicio de nossa aula, quando estávamos falando da VISUALIZAÇÃO DAS FALAS. As falas representam uma das formas de ação dramática e, como tal, devem ter todas as características da ação na vida real. Lembrem-se que uma das mais importantes características da ação, é a lógica. Dela é que devemos começar a trabalhar com qualquer elemento do Método. Vejamos o que acontece na vida real quando falta a clareza da lógica. Stanislawsky conta que um imperador russo ao receber um pedido de clemência para um condenado à morte, respondeu por telegrama: “Perdoar, não se pode enforcar”. As autoridades da prisão, leram: “Perdoar não se pode, enforcar” e o homem foi enforcado. Quando o imperador tomou conhecimento disso, ficou furioso: “Mas eu escrevi tão claramente: “Perdoar, não se pode enforcar”. Assim, por causa de uma vírgula, mataram um homem inocente. E assim, por falta de lógica na interpretação do texto, o ator mata um papel. A acentuação, a ênfase que se dá a uma ou várias palavras numa frase deve obedecer à lógica das intenções, dos objetivos da pessoa que a diz. Vejamos um exemplo muito simples: “O ensaio de hoje foi marcado para as oito da noite. Comecemos por acentuar uma palavra após outra mecanicamente e, depois, procurar uma provável razão disso.
1) O ensaio de hoje foi marcado para as oito da noite. O mais provável raciocínio seria esse: “Você diz que a aula de hoje foi marcada para as oito? Não senhor, o ensaio de hoje . ... etc.
2) O ensaio de hoje foi marcado para as oito da noite. O raciocínio: Você pensou que se tratava do ensaio de amanhã? O raciocínio: Você pensou que se tratava do ensaio de amanhã? Não senhor, o ensaio de hoje foi marcado...
3) O ensaio de hoje foi marcado para as oito da noite. Você diz que o ensaio não apareceu na ordem do dia? Não senhor, o ensaio foi marcado.
E assim por diante. Esse pequeno exemplo pode lhes parecer simples demais, quase infantil, e que não adianta insistir numa coisa tão óbvia. Mas o diabo é que, apesar dessa simplicidade, os nossos leitores gastam horas e horas de seu trabalho para explicar e corrigir os erros de lógica.
Então vale a pena insistir muito nos exercícios que possam facilitar o trabalho do ator. Esses exercícios se chamam “LEITURA LÓGICA”. Qualquer texto serve para esse fim. Basta que, antes de ler uma frase, você se pergunte:
“O que é que o autor quis dizer com isso?” Responda na base da lógica da resposta, aceite a intenção, o objetivo do autor, e leia. É claro que muitos erros são possíveis quando esse trabalho é feito sozinho, sem um controle alheio. Faço-o, pois com um colega, troque idéias com ele, discuta, comente e tome nota desses comentários. Se em vez de um texto qualquer você usar um texto dramático, submeta a leitura ao mesmo processo e, quando você chegar a tomar nota dos comentários, saiba que está criando material para mais um elemento do Método, “SUBTEXTO”, de que vamos tratar na próxima aula.

6ª AULA

Lembram-se de que, na última aula estabelecemos mais um elemento do Método, a VISUALIZAÇÃO DAS FALAS. A esse elemento, que é de um valor inestimável no nosso trabalho, acrescentamos o valor sonoro das palavras, bem como sublinhamos a importância da lógica no estudo do texto. Como exercícios recomendamos a LEITURA LÓGICA que deve ser comentada. Esses comentários quando tomam forma de raciocínio do personagem, representam o que chamamos de subtexto.
Antes de entrar em consideração sobre esse elemento, devo-lhes uma explicação. Os que conheceram o Método através da leitura das obras de Stanislawsky, devem se lembrar de que esse termo abrange muitos elementos. Ele representa a vida do espírito humano do personagem que o seu intérprete sente enquanto pronuncia as palavras do texto. Ele é o resultado do uso de todos os elementos que o intérprete empregou no estudo do texto: suplemento às Circunstâncias Propostas, a visualização, o “mágico” se fosse, etc.
Eu, na base de minha experiência no trabalho de ator, achei útil simplificar o significado desse termo, torná-lo mais cômodo. Eu chamo de SUBTEXTO tudo aquilo que o ator estabelece como pensamentos do personagem antes, depois e durante as falas do texto.
Notem bem: pensamentos do personagem, não do ator. Um erro comum dos estudantes de arte dramática: estabelecer o subtexto na base de seu próprio raciocínio. O verdadeiro subtexto só pode ser estabelecido depois do uso de todos os elementos culminados pelo “mágico” se fosse. Portanto, o subtexto é uma forma de ação interna do personagem; essa ação se realiza com o uso da VISUALIZAÇÃO ATIVA DAS FALAS INTERNAS.
Na vida real, nós nunca chegamos a transformar em palavras todos os nos­sos pensamentos, ora porque queremos escondê-los, ora porque não encontra­mos palavras para formulá-los, mas o fato é que esses pensamentos existem mesmo quando a pessoa parece ignorá-los por que, às vezes, eles tomam forma de imagens e não de palavras, mas basta analisá-los cuidadosamente para que eles se transformem em FALAS INTERNAS. Em romances muitas vezes encontramos páginas e páginas de considerações do autor sobre o que o personagem pensou, sentiu antes, depois ou enquanto dizia umas poucas palavras, ao passo que nas obras dramáticas, às vezes, encontramos essas poucas palavras sem uma explicação sequer.
Um dia, eu tive entre as mãos um exemplar da adaptação soviética do romance de L. Tolstoi, “Ana Karenina”. A cena da queda de Ana do apartamento de Vronski, não contém mais que cinco linhas. Ana se levanta do divã, vai à saída, Vronski quer acompanhá-la, mas ela o interrompe dizendo: “Não, não, não precisa, eu vou sozinha...” (Mais ou menos isso, se não me trai a memória). Só isso. Entretanto, no romance essa cena ocupa vinte páginas de um livro de grande formato. Nesse capítulo Tolstoi descreve todos os pensamentos e sensações de Ana e de Vronski nos seus mais profundos detalhes.
Imaginem como são preciosas essas páginas de Tolstoi para a intérprete do papel! E se o romance não existisse? O que deveria fazer a atriz com as cinco linhas no texto da peça? Completá-las com a sua imaginação e assim criar o seu subtexto.
Para lhes dar uma idéia da forma que tem o Subtexto, vou citar um exemplo tirado do papel de Bessemenov em “Pequenos Burgueses” de M. Gorki, apesar da dificuldade que sinto em concretizar em palavras aquilo que, durante o espetáculo, tem realmente forma de pensamentos do personagem. Nos últimos momentos da peça, quando Têterev sai definitivamente da casa de Bessemenov, há um diálogo como se segue.
TETEREV: - E ninguém vai ter pena do seu desafortunado e miserável filho e dirão na cara dele a verdade, assim como eu estou dizendo prá você agora: Prá que você viveu? (Pausa) Que é que você fez de bom? (Pausa) E seu filho, como você agora.., não vai responder nada.
BESSEMENOV: - É... é, falar você fala... Mas o que é que tem no coração?... Não, eu não acredito em você... Fora... fora da minha casa, chega! Já suportei até demais! Você andou enchendo a cabeça deles contra mim!...
TETEREV: - Ah!, se fosse eu!... Mas não, não fui eu... (Sai).
BESSEMENOV: - (Levanta-se) Pois é... Vamos ter paciência... esperar... Tivemos paciência a vida toda... vamos ter paciência ainda... esperar... (Sai).
Bessemenov que, já na fala anterior de Têterev, fica fascinado pela certeza com que o bêbado fala sobre o futuro dele, escuta-o pensando. Agora, para que vocês possam entender melhor como funciona o subtexto, vou procurar concretizar esses pensamentos em forma de comentários que eu imaginei para poder agir no lugar de Bessemenov.
a) Ouvindo: “E ninguém vai ter pena... etc.”, ele pensa: “é verdade?... É?... É mesmo?...
b) Depois da frase: “Prá que você viveu?”, numa reação muda, Bes­semenov pensa: “Mas como prá quê?... Ora essa...
c) Depois de: “Que é que você fez de bom?, Pensa: “Ora, não vai dizer que não fiz nada!... Vamos e venhamos...”
d) Depois de: “E seu filho, como você agora, não vai responder nada!...”, Bessemenov, já esmagado por suas profecias em que sente a realidade, mas ainda procura manter alguma dúvida, pensa: “Parece verdade, mas não sei, não.., ele tem muita lábia”, e diz: “Falar, você fala, mas...” E de repente pensa: “Não, é maldade dele!... É de raiva!... “ E diz: “Mas o que é que você tem no coração?” E depois, pensando: “Se eu acreditar nele, fico doido! Não agüento mais! Que ele vá embora antes que eu fique louco!”, diz: “Eu não acredito em você... Fora... fora da minha casa, chega! Já suportei até demais!” E com o pensamento: “Não pense que sou um trouxa!”, diz: “Você andou enchendo a cabeça dele contra mim!”, e olhando para sua mulher com ar vitorioso, pensa: “Viu como eu não tenho medo dele? E enquanto Teterev diz: “Ah!, se fosse eu!... Mas não, não fui eu...” Bessemenov, fanfarrão, pensa: “Vê se briga agora comigo! Vê se tem coragem! Experimenta, você vai ver!” Mas quando Têterev não aceita esse desafio, e sai, Bessemenov sente que isso significa a vitória “deles” e a derrota dele, Bessemenov, e pensa: “Nem quis falar com a gente?... Será que estou perdido mesmo?... O que é que eu vou fazer?” Mas, mesmo no seu desespero, encontra uma luzinha: “Não há de ser nada... Quem sabe, Deus ajuda... Ele gosta de mim, porque eu sou humilde, sou inocente...” e diz: “Vamos ter paciência, esperar... Tivemos paciência a vida toda... (Pensando: “Como qualquer bom cristão!...) vamos ter paciência ainda.., esperar...” (Pensando: “Assim quem sabe, Deus recompensa a gente”...) e sai.
Espero que esse exemplo lhes dê uma idéia de que forma deve ser empregar o subtexto para ser útil ao dizer o texto da peça. O que é que se deve fazer para criar o subtexto? É preciso usar todos os elementos até agora conhecidos: Circunstâncias Propostas, Lógica, Ação Interna, Objetivos, “Se fosse”, etc... para formar as Falas Internas que é o próprio subtexto. Mas o importante é que o efeito dessas falas internas se faça sentir na nossa maneira de dizer as falas do texto.
Procuremos alguns exemplos mais primitivos da influência do subtexto, sobre o modo de dizer o texto: imaginemos que, durante o ensaio de uma cena em que o personagem, parado diante de uma janela, pronuncia apenas uma palavra “nuvem”, o diretor da peça obrigue o ator, a titulo de experiência, a usar várias inflexões. Que subtexto usaria o ator para satisfazer a exigência do diretor? Passemos a exemplificar:
1. DIRETOR - Procure pronunciar essa palavra sem nenhum interesse, em tom branco, como uma leitura.
ATOR - (RACIOCINANDO EM FORMA DE SUBTEXTO) Dizer a palavra “nuvem”? Para que? Eu, por mim, não vejo nada de interessante nessa palavra, nem vejo razão para dizê-la... Mas já que você pede, está bem: nuvem.
Se você leitor, seguir esse raciocínio e reproduzir o subtexto sugerindo, certamente, ao pronunciar a palavra “nuvem” irá satisfazer a exigência do nosso diretor.
2. DIRETOR - Agora diga essa palavra com desprezo.
ATOR - Esta nuvem? Ela impressionou você? Esta aqui? A nuvem que impressiona deve ser de cor de chumbo! Deve estar rolando pelo horizonte! Mas esta aqui... Ora, grande coisa: nuvem.
3. DIRETOR - Diga a mesma coisa com grande admiração.
ATOR - A paisagem parecia tão monótona, com aquele céu azul pálido, sem uma mancha... E, de repente, eu vi atrás do telhado uma mancha branca que subia. E tudo mudou, veio a alegria, vontade de respirar de peito cheio. Ah! Como era bela aquela mancha!... Nuvem!...
4. DIRETOR - Diga essa palavra com horror, em pânico.
ATOR - Olha! Aquilo vem se aproximando tão rapidamente. Olha, vem quase tomando nas ondas do mar. Deve ser uma tempestade... Não, é pior, é um tufão que está chegando!... Corram, fujam!... Nuvem!
Notem uma coisa muito importante: Nos quatro exemplos citados o final do subtexto era sempre ligado de maneira lógica com o início do próprio texto:
1. Mas já que você pede, está bem: nuvem;
2. Ora, grande coisa: nuvem;
3. Como era bela aquela mancha!... Nuvem.
4. Corram, fujam!... Nuvem!...
Quando o ator não consegue esta ligação, nós não sentimos o efeito do subtexto. Experimentem interromper o subtexto antes da ligação lógica, como segue:
1. Dizer a palavra “nuvem”? Para que? Eu, por mim, não vejo nada de interessante nessa palavra, nem vejo razão para dizê-la... Nuvem.
Podem constatar que o efeito final não é o tom branco e sim o desprezo, porque nós excluímos do subtexto o que causa a indiferença: “Mas já que você pede, está bem: nuvem”.
Vocês podem fazer esta experiência com os outros três exemplos. Quando o subtexto é bem composto, principalmente do ponto de vista da Lógica da Ação, ele levará o ator a uma interpretação segura, às vezes per­feita, mas um pequeno erro é capaz de diminuir enormemente o valor da interpretação e até mutilá-la.
Gostaria de ilustrar o efeito de um desses erros, cometido por mim mesmo. Trata-se da primeira entrada de Bessemenov, no primeiro ato de “Pequenos Burgueses”. Ele entra ouvindo seu filho assobiar.
BESSEMENOV - Vai assobiando, vai!... Mas a minha petição, vai ver que você esqueceu de fazer outra vez...
PIOTR - Fiz, fiz...
BESSEMENOV - Até que enfim encontrou uma folguinha!... Custou, hein? (SAI).
Desde os ensaios, no início, o meu raciocínio era assim: o pai está irritado em geral (entre outras coisas, sente dor nos rins); ouve o seu filho assobiar e, o que é pior, fazer isso na sala em que há ícones.
Daí, o subtexto primitivo decorria da religiosidade ofendida pelo departamento do filho e a conseqüente irritação: “Essa gente não tem nenhuma moral! Olha, ele está assobiando diante dos ícones! Sacrilégio! Sem vergonha!...”, e para ligar com a fala: “Dinate dos ícones!...” Notem que a maneira de dizer a fala traduzia o efeito do subtexto: a irritação, a indignação. Muito mais tarde eu constatei um erro de lógica da ação, que eu encontrei na própria fala: “... mas a minha petição vai ver que você esqueceu de fazer outra vez!” Então o objetivo não era “xingar o sacrilégio”, mas conseguir a petição. Então não era a raiva aberta, mas a ironia maldosa de quem se sente ofendido. O meu subtexto ficou outro: “Olha, está assobiando! Que menino formidável!... Tão inteligente, tão moderno!... Ele sabe o que faz!... “Vai assobiando, vai!... “, e para a continuação: “Mas ajudar um pouquinho o seu velho pai que sacrificou toda a sua vida para o bem dos filhos, isso é uma bobagem! Prá que? Ele não vale nada!”, e para ligar com o texto: “Eu já sabia! Assobiar você assobia...” que liga com o texto: “Mas a minha petição...“ etc. O efeito desse novo subtexto se sentiu no texto. Em vez de um velho gratuitamente rabugento apareceu um personagem muito mais humano e mais complexo.
Quando um ator começa a compor um subtexto, sua extensão depende do temperamento do ator, de sua estrutura psíquica. O importante é que, curto ou longo, ele surta o efeito desejado. Além disso, é de notar que se, no início do trabalho do texto, o subtexto é muito longo, no correr dos ensaios ele ficará cada vez mais condensado, até que se reduza à extensão exatamente igual a que tem na vida real. Vou procurar tornar mais clara a mecânica dessa redução gradativa do subtexto, usando para isso um exemplo tirado da vida real. Um dia eu fui procurar um amigo na repartição em que ele trabalha, na sua sala encontrei uma moça que, a minha pergunta se o Dr. Idarcy tinha deixado algum recado para Eugênio, respondeu sorrindo: “Não Senhor, mas ele não demora. Sente-se, por favor”. E depois de uma pausa: “É verdade que Pequenos Burgueses entra novamente em cartaz?” Lembro-me que eu fiz uma pequena pausa e respondi muito gentilmente: “Sim, senhora, no inicio do mês que vem”. Quando fiquei sozinho, procurei restabelecer na memória com precisão o que se passou na minha mente durante a pausa que fiz. Lembrei-me que mentalmente fiz uma exclamação “Ah!” E simultaneamente imaginei o bar do nosso teatro durante um intervalo, com mais ou menos cem pessoas, no meio dos quais a moça em questão. E nada mais. Mas sentado lá sem nada para fazer, procurei divertir-me imaginando esse caso como cena de uma peça. Que subtexto usaria eu, se precisasse interpretar essa cena? De acordo com a Lógica das Circunstâncias, seria o seguinte: Porque ela fez essa pergunta a mim? Evidentemente porque ela me conhecia como ator daquele teatro. Mas por que ao perguntar, ela sorriu? Talvez porque gostasse da peça. Sim, mas ela sorriu para mim, e com evidente prazer. Bom, porque provavelmente ela gostou de mim na peça. Foi esse o subtexto que causou a pausa e me fez responder muito gentilmente. Esse subtexto, relativamente longo para uma pequena fala, pouco a pouco seria reduzido a uma exclamação. “Ah!” e a visualização da moça no bar. E é assim que isso funciona no nosso trabalho profissional.
Gostaria muito que os meus leitores pudessem fazer algumas experiências com o uso dos elementos do Método. Sendo o subtexto um dos mais poderosos elementos, creio que vale a pena fazer um esforço para que possam experimentar o seu uso.
Proponho, pois que estudem e executem um exercício. Façam em casa a experiência com a palavra GUERRA e SILENCIO, da maneira como fizemos com a palavra NUVEM. Procurem encontrar o subtexto que lhe permite pronunciar essas palavras da seguinte maneira:
1. Neutro, como numa leitura.
2. Com desprezo.
3. Com grande admiração.
4. Com horror, em pânico.
Verifiquem o resultado pedindo para isso, a assistência de um colega.

Nenhum comentário:

Postar um comentário