INTERPRETAÇÃO CÊNICA - REFERÊNCIAS
O Núcleo do Teatro de Brecht publicou os Cadernos do Teatro em mídia impressa que foi distribuído aos participantes dos cursos e do Núcleo para que houvesse um conhecimento básico sobre as técnicas de teatro para os iniciantes.
Aqui está sendo mostrado o volume nº 7 que versava sobre interpretação cênica a partir do método racional-analítico desenvolvido pelo Núcleo do Teatro de Brecht.
INTRODUÇÃO A INTERPRETAÇÃO CÊNICA
DE PERSONAGENS
CRITÉRIOS PARA TEATRO, VÍDEO,
CINEMA E TELEVISÃO
DE PERSONAGENS
CRITÉRIOS PARA TEATRO, VÍDEO,
CINEMA E TELEVISÃO
O trabalho do ator em Teatro,
Vídeo, Cinema e Televisão guarda as mesmas proporções de complexidade e
relação, apesar do meio de exibição e apresentação serem diferentes.
Interpretar personagens nada mais é
que representar a aventura do espírito humano, como já diziam outros
metodologistas. Se verificarmos a significação da palavra representar,
encontraremos as seguintes definições no dicionário: ser a imagem de; parecer,
aparentar, figurar, reproduzir a imagem de; pintar, retratar, significar,
simbolizar, aparecer numa outra forma; figurar como emblema, apresentar-se,
oferecer-se ao espírito, dirigir uma representação, ser ministro ou embaixador
de, ser mandatário ou procurador de, apresentar-se no lugar de; fazer às vezes
de; suprir a falta de; exibir em teatro, desempenhar em espetáculo público (um
papel de peça teatral), desempenhar funções de ator.
Mas o grande problema nos dias de hoje
é a questão do entendimento de representar. Antigamente quando o acesso à
informação era mais difícil e mais demorado, tanto para atores quanto para o
público comum, a arte de representar poderia realmente exprimir a chamada
imitação, ou seja, o ator “copiava mentalmente” ou “imaginava” gestos,
trejeitos e expressões, que se repetiam “ad aeternum”, fosse qual fosse o estado
de espírito ou ânimo da cena. Assim, o que se mostrava em cena era “acreditado
piamente” pelo público como uma verdade indiscutível. Como o ator geralmente
fazia um estudo básico sobre as características do personagem, estabelecia
então um rótulo, um estereótipo, um clichê que lembrava vagamente o personagem
estabelecido pela trama teatral, para desespero dos autores de peças teatrais.
Tanto é que William Shakespeare
(1564-1616), aviltado com o que faziam os atores da época em seus espetáculos,
dá alguns conselhos na própria peça teatral, em um trecho de HAMLET, na
conversa entre o Príncipe Hamlet da Dinamarca e o Primeiro Ator antes da
representação para o rei Cláudio e a corte da Dinamarca.
HAMLET - “...” Não gesticule assim,
serroteando o ar com a mão. Contenha-se. Mesmo na torrente da paixão, é preciso
manter o autocontrole. Ai, me dói na alma, ouvir um ator desmiolado e
barulhento cabeça-de-peruca dilacerando uma paixão até a por em trapos,
rachando os ouvidos do público. Tornando a platéia, na sua maior parte, incapaz
de apreciar qualquer coisa que não seja confusão e barulheira. Evitem esse
exagero, por favor. Mas também não se pode desprezar a caracterização do
personagem. Ajuste o gesto à palavra e a palavra ao gesto, tendo o cuidado de
ser natural. O propósito do teatro sempre foi oferecer um espelho à natureza, e
ajudar a sociedade a se ver, como realmente é! Já vi atores representarem - e
muito elogiados, por sinal, que não falavam como cristãos, nem como pagãos, nem
sequer como homens! Esbravejavam e mugiam tanto, que eu até achei que os homens
eram feitos e muito mal feitos, por péssimos aprendizes da natureza, de tão
abominável que era a forma encontrada por eles para imitar a humanidade.
PRIMEIRO ATOR - Creio que em nosso
elenco já corrigimos razoavelmente esse defeito, senhor.
HAMLET - Mas é preciso acabar de vez
com ele! E os atores cômicos então? Não digam mais do que está escrito no seu
papel. Tem uns, que se põem a dizer asnices, para agradar algum incauto da
platéia, mesmo que nesse momento esteja acontecendo no palco alguma coisa
realmente importante. Além de ser detestável, isso revela a mesquinha ambição
do bobo que se comporta dessa forma.
Infelizmente verificamos esta prática quase
que diariamente nos espetáculos teatrais de amadores e profissionais e também
até na Televisão e no Cinema com muita freqüência entre atores de menor
expressão.
Fica a pergunta: o que fazer então
para representar perfeitamente um personagem, seja ele do Teatro, Vídeo, Cinema
ou da Televisão? A resposta é muito simples: observação, pesquisa,
conhecimento, dedução analítica e vivência do personagem. Muitas pessoas acham
que o trabalho do ator é meramente físico e expressional. Aí reside o engano
até entre os próprios atores, que muitas vezes se entregam a infindáveis
exercícios de expressão corporal no intuito de desenvolver o melhor gesto e a
melhor expressão, visando uma grande solução estética quando chegar a hora de
desempenhar o personagem. Por isso, vamos analisar inicialmente os postulados
teatrais e a forma como se desenvolvem o pensamento, a intenção e a ação.
O PROCESSO MENTAL
DA INTENÇÃO A AÇÃO
DA INTENÇÃO A AÇÃO
Para compreender o processo mental e
sua evolução até a externação visível da personalidade do individuo existe a
necessidade do ator entender como tudo se inicia na mente, o universo
intangível, até chegar aos princípios sensoriais, as manifestações físicas.
Vamos considerar que existem 2 níveis
de atividade anímica e 1 nível de atividade física, a saber:
Nível 1 – O pensamento (primário) -
tudo começa quando ocorre um pensamento que pode ter origem a partir da própria
pessoa ou ainda ser provocado por agentes externos. Da origem pessoal podemos
relatar pensamentos oriundos das necessidades fisiológicas até o próprio
instinto de sobrevivência e autopreservação. Pensamentos gerados ou
influenciados por agentes externos podem ter ou não o mesmo valor que os
pensamentos inatos. Neste nível considerado primário está o início de todas as
atividades realizáveis pelo indivíduo, mas que necessariamente podem ou não se
tornar realidade.
Nível 2 – A intenção (intermediário) -
muito bem, a partir do pensamento surge então a intenção. É neste nível que
começa a parte visível da personalidade e é considerado o intermediário entre o
pensamento e a ação. Aqui, o indivíduo começa a estruturar a atividade mental e
elabora as providências necessárias para realizar o intento que ocupa sua
vontade neste momento. Neste nível são exercidas todas as faculdades inerentes
a memória e ao domínio sensorial.
Nível 3 – A ação (concludente) -
completados os níveis anteriores todas as informações então serão processadas
no nível físico. É o momento em que checadas todas as possibilidades, esgotadas
as probabilidades e testadas as conveniências o indivíduo parte para a
consecução das suas intenções, demonstrando através de atos e ações o seu
intento final.
Desta maneira partindo do princípio
mental até a atividade física tudo pode demorar apenas alguns segundos ou levar
um bom tempo até a conclusão da ação. Genericamente assim se desenvolve todo o
processo de externação da personalidade. O pensamento que é a motivação, a
intenção que é a vontade e finalmente a ação que se traduz no processo físico e
sensorial.
O RECONHECIMENTO DOS
COMANDOS INTERNOS E EXTERNOS
COMANDOS INTERNOS E EXTERNOS
Quando tomamos decisões para a
execução de atos e atitudes estamos obedecendo a comandos. A reunião de todos
os comandos internos e externos forma a personalidade do indivíduo. A
convivência familiar, a experiência educacional, o ambiente físico e psíquico
em volta do indivíduo moldam a sua motivação, a sua vontade e a maneira como
ele vai agir perante as várias situações que se apresentarão durante a sua
vida. Hodiernamente a formação da personalidade obedece cada vez mais a padrões
coletivos uniformes, norteados pela moda, publicidade, marketing, consumismo,
etc. De tempos em tempos surgem novas tribos, novos costumes, novas
manifestações artísticas. A grande maioria de pessoas não questiona as
necessidades criadas por estes movimentos, nem muito menos questionam a si
mesmos se precisam ou querem aquilo que é atribuído como essencial. Muitos
dizem que são donos de suas próprias decisões, que mandam em suas vidas e que
só fazem aquilo que desejam. Fica uma pergunta: alguém seria capaz de
determinar com segurança o quanto de sua personalidade é oriundo de sua própria
formação e o quanto é originado pelos apelos externos? Pergunta difícil,
resposta impossível. Para responder o indivíduo precisaria ter conhecimento de
todos os seus processos psicossomáticos, conhecer a fundo o metabolismo humano
e toda a rede neural e sensorial e como funciona esse complexo que movimenta
diariamente fluidos, material gasoso e trocas químicas que mantém o corpo em
franco progresso. Também teria que conhecer plenamente a forma abstracionista
do pensamento e todas as manifestações anímicas conhecidas e não explicadas
pela ciência atual.
De qualquer maneira podemos considerar
o pensamento inato e o induzido como formas de comando. O pensamento inato é
dotado de maior energia e motivação do que aquele que é imposto por outros
agentes que não o próprio indivíduo. O comando como pensamento motivado pelo
próprio indivíduo é elaborado e construído com as intenções voltadas para ganho
e prazer que serão vivenciados pelo autor do pensamento. Já o comando motivado
por agentes externos necessariamente não será para proveito próprio do
indivíduo e aí a energia e a motivação colocada sobre as intenções às vezes
serão apenas para a conclusão da ação específica ordenada pelo comando. Por
isso o comando para o lazer e a diversão é muito mais vivenciado do que o
comando para trabalhar.
Naturalmente todos os indivíduos são
essencialmente hedonistas, buscam no prazer a finalidade da existência. Como
trabalhar é necessário para manter a subsistência, obter ganhos financeiros e
ocupar uma posição na sociedade as ações dispendidas são geralmente automáticas
e assim o vivenciamento não é pleno. Via de regra o comando externo só será
plenamente realizado e vivenciado se ele se tornar um comando interno, com
propósitos no próprio indivíduo.
É importante saber disso por que “o
caminho das pedras” da interpretação cênica de personagens de Teatro, Vídeo,
Cinema e Televisão passa pelo domínio dos comandos externos provindos do autor,
do texto, roteiro ou script, do diretor, da técnica e da produção,
transformando-os em comandos internos.
RELAÇÃO SIMBIÓTICA
PESSOA/ATOR/PERSONAGEM
PESSOA/ATOR/PERSONAGEM
Interpretar um personagem não é apenas
gesticular e se movimentar como tal, muito menos empolar a voz de modo a dizer
bem o texto ou ainda andar de um lado a outro mostrando uma boa figura. Aliás,
o que muito se vê são atores que gostam de fazer personagens bonitos, bem
motivados, positivos e que mostrem, o ator, não o personagem, como o “mocinho”
da trama. Temos muitos exemplos de atores “canastrões” e atrizes “prima donas”
que escolhem o que querem fazer, geralmente optando por algum personagem bem
próximo da sua pouca competência profissional.
Aqui fica um reparo sobre a diferença
na escolha de atores para um determinado personagem em Teatro, Cinema e
Televisão. Geralmente o Autor de uma novela ou filme, o Diretor ou o Produtor
de TV e Cinema escolhem seus atores com base na característica física e de como
querem mostrar seus personagens da trama, levando em conta muito mais os
atributos pessoais de atores do que sua capacidade de interpretar e assimilar a
personalidade do personagem. Já no Teatro o que os Diretores e Produtores
precisam é de atores que sejam capazes de assimilar totalmente a “psiquê” dos
personagens da trama.
Isso acontece por que de certa forma a
Televisão e na maioria das vezes o Cinema são coloquiais, apresentam temas e
roteiros cotidianos quase sempre sintéticos e superficialistas, voltados
principalmente para o lazer e o entretenimento. Já o Teatro historicamente além
de levar ao palco lazer e entretenimento sempre foi a crítica social, o olho
inquiridor dos costumes e modos de fazer da humanidade, denunciando, informando
e propondo discussões sobre o “modus vivendi” e o “modus operandi” da
sociedade. Daí a necessidade de o ator de Teatro ser mais completo. Na
Televisão e no Cinema quando há um erro de cena basta voltar tudo de novo e
gravar ou filmar a mesma cena até ficar perfeito. O Teatro é feito ao vivo, com
público presente e apresentado normalmente de terça-feira a domingo, as mesmas
cenas do mesmo espetáculo, com a devida dramaticidade para convencer o público
presente. É corrente dizer que o ator formado em Teatro tem preparo para
trabalhar também em Televisão e Cinema. Os atores formados em Televisão e
Cinema tem grande dificuldade em fazer Teatro.
Voltando a questão da interpretação
cênica de personagens o ator tem que estabelecer o que se chama de relação
simbiótica pessoa/ator/personagem. Recorrendo ao significado científico,
simbiose é a associação permanente de dois ou mais seres vivos, indispensável
pelo menos a um deles, e útil ou indiferente a outro.
Na natureza temos vários exemplos de
simbiontes como o tubarão que é um predador natural dos mares e o peixinho
conhecido como Limpador, que promove a limpeza da pele e remove os detritos e
restos de alimentos das fileiras de dentes das mandíbulas do tubarão, sem que
este o devore. Do rinoceronte africano e o pequeno pássaro preto que limpa as
dobras da pele do animal de fungos e pequenos insetos, do crocodilo e outro
pássaro que também limpa a mandíbula de restos alimentares. Outro exemplo dos
mares é a relação entre o Paguro Bernardo, um grande caranguejo marinho e a
Actínia, uma anêmona que tem dificuldades de movimentação. O Paguro Bernardo é
o alvo principal de polvos, tubarões e outros peixes maiores para quem ele não
tem defesa alguma. A Actínia é um animal marinho que parece uma planta e que se
fixa nas pedras do fundo dos oceanos, com um corpo cilindriforme e um “pompom”
no alto que exibe variadas cores vivas que atraem peixes que são enredados pelo
tufo. Aprisionado, a Actínia libera então dardos venenosos disparados das
pontas da inflorescência que paralisam o peixe e aí começa a devorá-lo pela
boca presente no centro do tufo. Por causa da pouca mobilidade da Actínia, apenas
alguns centímetros por dia e sabendo do perigo, outros peixes não se aproximam,
condenando a anêmona a morrer de inanição. O que acontece então é
surpreendente. A Actínia “monta” nas costas do Paguro Bernardo e aí a relação
simbiótica acontece plenamente. A Actínia ganha mobilidade extensa e passa a
capturar mais peixes e o Paguro Bernardo fica livre dos seus predadores
naturais, pois cada vez que um peixe tenta devorá-lo a Actínia manda uma carga
de dardos venenosos na boca do bicho, deixando-o paralisado e em certos casos
matando o animal.
Portanto para aplicar as técnicas de
interpretação cênica de personagens a primeira coisa que precisa existir é a
dissociação entre pessoa, ator, personagem, sendo coisas distintas entre si.
Para entender a simbiose artística pessoa/ator/personagem e realizar essa
separação é preciso estabelecer as competências de cada simbionte, a saber:
A PESSOA – repositório de todas as
informações sociais, culturais, políticas, filosóficas, científicas e de todas
as relações estabelecidas pela civilização e pelo espírito humano. É quem detêm
a vivência sócio-cultural-política.
O ATOR – cabedal técnico das ações
cênicas. Reúne todas as informações referentes à práxis cênica do Teatro,
Cinema e Televisão. Utiliza o conhecimento mental e o corpo físico no
desenvolvimento cênico da trama teatral e, videográfica e cinematográfica.
O PERSONAGEM – elemento da estrutura
dramática que processa toda a ação definida pela trama do autor.
Desta feita o ambiente em que cada um
vive é bem específico, ou seja, a pessoa vive no mundo real e desempenha suas
atribuições no dia-a-dia, o ator só existe na práxis cênica do Teatro, Cinema e
Televisão e o personagem tem sua existência ligada a peças teatrais e roteiros
de Cinema e Televisão.
Quem pretende trabalhar com
interpretação cênica precisa saber dividir e compartimentar muito bem a relação
pessoa/ator/personagem. A pessoa tem a existência definida pela educação
familiar, escolar e social, tem tabus, preconceitos, credo religioso e ideais
sócio-políticos subjetivos. O ator pelo contrário não tem existência
pré-definida e é desprovido de todo e qualquer conceito moral sobre a sociedade
e a civilização. O personagem tem sua vida determinada pela condução da linha
dramática proposta pelo autor onde expõe todas as suas emoções, idiossincrasias
e desencontros pessoais e coletivos.
Precisa haver uma distância física e
psíquica entre estes simbiontes. Logicamente quanto mais próximo física e
mentalmente menor será a eficiência na interpretação proposta do personagem e
maior será a confusão entre a pessoa e o personagem, o que vai ocasionar o
mesmo desempenho em qualquer personagem.
E aí reside a lógica da ação. O ator
se alimenta da experiência e da vivência da pessoa. Com este conhecimento
pragmático e o conhecimento técnico das lides dramáticas elabora o perfil
necessário e constrói o personagem físico e mental da trama dramatúrgica. Para
que o ator exista em toda sua pujança há a necessidade de a pessoa ter bom
conhecimento sobre as relações sociais, conhecer profundamente história,
política, eventos sociológicos e vivenciar todos esses conhecimentos. Lembrando
que a experiência não se adquire com o tempo e sim com a capacidade máxima de
vivenciar cada possibilidade da vida.
Outra necessidade para o desempenho
correto da interpretação cênica é ter os requisitos necessários para o
trabalho. Como a ferramenta que o ator utiliza é o corpo e a voz então tudo
precisa ter boa definição para a correta elaboração e construção do personagem.
Precisa ter conhecimento sobre anatomia humana e ter controle absoluto dos
processos corporais para trabalhar cada parte do corpo de acordo com a concepção
psicossomática do personagem. Tem que ter recursos vocais e fazer uso da
respiração diafragmática para produzir acentos prosódicos diferenciados.
Enfim, o trabalho de interpretação
cênica exige bem mais do que apenas os exercícios expressionais propostos por
certos métodos de interpretação dramática. Precisa haver a integração plena com
o cotidiano, os processos político-sociais, a história da civilização e uma boa
dose de argúcia, dedução, observação, pesquisa e análise da aventura do espírito
humano.
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